sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O DIABO DENTRO DO QUADRO

Vera  Aletéia era uma jovem senhora de quarenta e poucos anos solteirona e sem grandes expectativas quanto ao futuro, era funcionária pública em  uma repartição qualquer  e ganhava um bom dinheiro  como pintora . Tinha uma boa vida, morava em barro nobre e pouco se importava com a solidão. Muito pelo contrário.  Vivia muito bem com seus sete gatos e detestava de lidar com pessoas. Como vivia dizendo, pessoas são perda de tempo. Estão sempre com problemas e achando que você deve estar sempre a concordar com elas.
Sua rotina era simples: trabalho casa, casa trabalho. Aos fins de semana um pouco de vinho e boa musica de madrugada entre as quatro paredes do seu apartamento. Era quando se permitia render-se a fantasia e produzia a maioria de seus quadros.
Essa loura que, na juventude era comparada a musas do cinema e despertava o desejo de muitos homens bem colocados que sempre fez questão de desprezar sem  a mínima delicadeza, no fundo se orgulhava disso. A solidão , não ter filhos e nem ser mãe de família tinha sido uma escolha sua. E nem por um instante se arrependia disto. Filhos? Para quer filhos?! Tinha sua própria vida e isso era mais do que precisava. Filhos são pura dor de cabeça e desassossego. Coisa que as pessoas mais inteligentes evitam.
A concretização de sua própria vida era tudo que lhe importava. Via como uma obrigação consigo mesma que deveria ser estendida a todas as mulheres que prezam acima de tudo seu bem estar pessoal e pouco se importam com as exigências do mundo ou da sociedade.
Sabia que nenhum homem lhe aceitaria por muito tempo sendo cheia de opiniões do jeito que era. Os homens não vivem se mirando em espelhos, mas na pratica são mais vaidosos do que as mulheres. A diferença é que  sua vaidade passa pela ditadura de suas vontades e caprichos mesquinhos. Geralmente fazem das mulheres no plano privado as principais vítimas de seus narcisismo.
Era uma bela manhã de domingo e havia acordado com o bom sentimento despertado por um quadro que terminara na madrugada anterior. Era a alegórica imagem de uma mulher nua sobre um unicórnio negro de olhos vermelhos em meio a um infinito de cores caóticas e vivas . Ao contrário das interpretações mais previsíveis, não queria dizer com aquela imagem qualquer coisa sobre liberdade. Mas apenas a indiferença de si mesma em relação as pessoas e ao mundo, a própria realidade. Tratava-se de um tributo a fantasia e ao intimismo como regra fundamental da vida. Isso era bem a sua cara.
Bebeu um pouco de vinho para celebrar a pintura. Uma taça levou a outra taça e em pouco tempo foram duas garrafas. Já quase adormecia na cama quando ouviu uma voz dizendo:
-EI! Ei!!!! Você!!!!!Olhou em volta assustada  e não viu ninguém. Foi quando percebeu para sua surpresa e perplexidade que a voz saia do referido quadro que repousava aos pés da cama como precioso objeto de contemplação.
-Prezada Vera Aletéia que me ofertou com a vida simplória de uma tela que só existe aos olhos dos outros. Por favor me leve daqui! Quero estar em exposição! Ser vista por muitos olhos.
Vera não acreditava naquilo. Muito menos no desejo da voz que contrariava tudo aquilo que julgava definir sua arte. Desconsiderando o gritante absurdo do fato começou a dialogar com a mulher do quadro:
- Mas que merda você esta dizendo? Pinto para o prazer dos meus próprios olhos. Para minha própria degustação.
-Sei que sou sua criatura. E por isso mesmo tenho minhas próprias vontades. Só lhe peço que as obedeça.
-Como pode a criatura contrariar o criador?! Eu sei mais sua vontade do que você. Você não passa de uma expressão de sentimentos que guardo por dentro. E esse seu pedido não tem cabimento.
- Sei mais sobre o cabimento de minhas palavras do que você as suas. Sou tão produto de suas vontades que realizo sua mais profunda vaidade. Mesmo que inconfessa. Exijo olhares.
-Você não exige nada!
-Eu exijo tudo! Pois sou sua imagem e semelhança e personifico você como seu outro mais oculto.
-Meu outro mais oculto é falsidade e miragem. Você é apenas o que eu queria dizer.
-E quem disse que você tem algum controle sobre aquilo que diz Aleteia? Seu izer é franco mas não comporta tudo aquilo que você é e ignora.
- Mas que loucura é essa?!!!!!!- Berrou Vera Aletéia ainda deitada  com os olhos sobre o quadro.
-Lhe direi a verdade. Você não está conversando com um quadro. Eu sou seu próprio silêncio. E o silêncio é o demônio que te habita nesta gaiola dourada a qual se reduziu sua vida. Não digo outra coisa além da verdade de que nada em sua existência é sinônimo de conforto. Que não basta afirmar-se contra o mundo. Mesmo em seu isolamento você ainda é parte e produto dele na mesma lógica aqui suposta de um embate severo entre criador e criatura. Eu sou seu diabo....
-Isso tudo é absurdo! Nem por um segundo tomo a sério suas palavras! Nem acho que isso existe. Estou sonhando.
-Toda verdade vivida é sempre uma fantasia unilateral e estúpida. Mas se você dentro do sonho o percebe como um sonho, simplesmente acorda da fantasia. Então lhe pergunto: Você acordou e voltou ao vazio da sua realidade vivida?
Vera Aleteia ficou em silêncio por alguns minutos esperando acordar. Mas isso não aconteceu... Depois voltou a ofensiva contra aquele aparente delírio:
-Devo estar enlouquecendo. Mas não farei o jogo da minha loucura. Não continuarei a falar com você.
- Que assim o seja. Continuarei falando dentro da sua cabeça. Sou seu demônio mais intimo e , consequentemente, parte de você.
- Você não sou eu.
-Eu não sou o que você pensa sobre você. Mas estou dentro de tudo aquilo que você é, como aquilo que escapa a tudo o que você se tornou e queria ser....
-Você não é nada disso.
-Nada é uma palavra chave neste dialogo. Por muito tempo você deixou de enfrentar o mundo achando que poderia ser você fugindo dele. Eu sou você dizendo que você só pode ser você enfrentando o mundo. Se o mundo não sabe dos seus quadros eles não existem. Você está em dívida com você.
-Mas eu não preciso da opinião do mundo sobre a minha arte.
-Mas ela só pode existir de verdade quando existe de algum modo nos outros. Ou a arte deixa de ser arte.
_-Isso não faz sentido. A arte é concretamente os quadros que faço e nos quais me reconheço, onde reconheço o meu mundo.
-A arte é um disfarce, uma muleta para você suportar sua falta de mundo. Ela só existe quando você a transforma em um meio de enfrenta-lo. Sou seu demônio e o fundamento da sua arte.
- Você não é nada.
-Eu sou a goteira pingando e a garrafa vazia de vinho. Eu sou tudo aquilo que você ignora como verdade viva de si mesma.
-Suma daqui!!!!!! Eu não te suporto!
-Eu sei....
Esta imaginária prosa se desdobrou por mais algumas horas até Vera Aletéia entrar em estado de absoluto desespero. Ás quatro horas da tarde levantou da cama e pulou pela janela do apartamento dando cabo de sua aparentemente feliz existência.
Sua irmã, professora de história da arte , organizou uma exposição de seus quadros em um centro cultural alternativo. A partir de então ela se tornou uma celebridade nos meios acadêmicos. As notícias de jornais sobre a misteriosa morte da pintora solitária foi objeto de especulação nas redes sociais e , aos poucos, detalhes  escabrosos de sua vida privada se fizeram públicos garantindo-lhe uma fama  nunca antes vista.  Talvez, meus caros leitores, o diabo do quadro tivesse certa razão sobre os abismos que definiam a relação entre a criadora e a criatura daquela imagem alegórica.

Moral da história: Escute com sabedoria suas fantasias de forma racional para que elas não te destruam de forma irracional...

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