Vera Aletéia era uma jovem senhora de quarenta e
poucos anos solteirona e sem grandes expectativas quanto ao futuro, era
funcionária pública em uma repartição
qualquer e ganhava um bom dinheiro como pintora . Tinha uma boa vida, morava em
barro nobre e pouco se importava com a solidão. Muito pelo contrário. Vivia muito bem com seus sete gatos e
detestava de lidar com pessoas. Como vivia dizendo, pessoas são perda de tempo.
Estão sempre com problemas e achando que você deve estar sempre a concordar com
elas.
Sua rotina era simples: trabalho
casa, casa trabalho. Aos fins de semana um pouco de vinho e boa musica de
madrugada entre as quatro paredes do seu apartamento. Era quando se permitia
render-se a fantasia e produzia a maioria de seus quadros.
Essa loura que, na juventude era
comparada a musas do cinema e despertava o desejo de muitos homens bem
colocados que sempre fez questão de desprezar sem a mínima delicadeza, no fundo se orgulhava
disso. A solidão , não ter filhos e nem ser mãe de família tinha sido uma
escolha sua. E nem por um instante se arrependia disto. Filhos? Para quer
filhos?! Tinha sua própria vida e isso era mais do que precisava. Filhos são
pura dor de cabeça e desassossego. Coisa que as pessoas mais inteligentes
evitam.
A concretização de sua própria
vida era tudo que lhe importava. Via como uma obrigação consigo mesma que
deveria ser estendida a todas as mulheres que prezam acima de tudo seu bem
estar pessoal e pouco se importam com as exigências do mundo ou da sociedade.
Sabia que nenhum homem lhe
aceitaria por muito tempo sendo cheia de opiniões do jeito que era. Os homens
não vivem se mirando em espelhos, mas na pratica são mais vaidosos do que as
mulheres. A diferença é que sua vaidade
passa pela ditadura de suas vontades e caprichos mesquinhos. Geralmente fazem
das mulheres no plano privado as principais vítimas de seus narcisismo.
Era uma bela manhã de domingo e
havia acordado com o bom sentimento despertado por um quadro que terminara na
madrugada anterior. Era a alegórica imagem de uma mulher nua sobre um unicórnio
negro de olhos vermelhos em meio a um infinito de cores caóticas e vivas . Ao
contrário das interpretações mais previsíveis, não queria dizer com aquela
imagem qualquer coisa sobre liberdade. Mas apenas a indiferença de si mesma em
relação as pessoas e ao mundo, a própria realidade. Tratava-se de um tributo a
fantasia e ao intimismo como regra fundamental da vida. Isso era bem a sua
cara.
Bebeu um pouco de vinho para
celebrar a pintura. Uma taça levou a outra taça e em pouco tempo foram duas
garrafas. Já quase adormecia na cama quando ouviu uma voz dizendo:
-EI! Ei!!!! Você!!!!!Olhou em
volta assustada e não viu ninguém. Foi
quando percebeu para sua surpresa e perplexidade que a voz saia do referido
quadro que repousava aos pés da cama como precioso objeto de contemplação.
-Prezada Vera Aletéia que me
ofertou com a vida simplória de uma tela que só existe aos olhos dos outros.
Por favor me leve daqui! Quero estar em exposição! Ser vista por muitos olhos.
Vera não acreditava naquilo.
Muito menos no desejo da voz que contrariava tudo aquilo que julgava definir
sua arte. Desconsiderando o gritante absurdo do fato começou a dialogar com a
mulher do quadro:
- Mas que
merda você esta dizendo? Pinto para o prazer dos meus próprios olhos. Para
minha própria degustação.
-Sei que sou
sua criatura. E por isso mesmo tenho minhas próprias vontades. Só lhe peço que
as obedeça.
-Como pode a
criatura contrariar o criador?! Eu sei mais sua vontade do que você. Você não
passa de uma expressão de sentimentos que guardo por dentro. E esse seu pedido
não tem cabimento.
- Sei mais
sobre o cabimento de minhas palavras do que você as suas. Sou tão produto de
suas vontades que realizo sua mais profunda vaidade. Mesmo que inconfessa.
Exijo olhares.
-Você não
exige nada!
-Eu exijo
tudo! Pois sou sua imagem e semelhança e personifico você como seu outro mais
oculto.
-Meu outro
mais oculto é falsidade e miragem. Você é apenas o que eu queria dizer.
-E quem disse
que você tem algum controle sobre aquilo que diz Aleteia? Seu izer é franco mas
não comporta tudo aquilo que você é e ignora.
- Mas que
loucura é essa?!!!!!!- Berrou Vera Aletéia ainda deitada com os olhos sobre o quadro.
-Lhe direi a
verdade. Você não está conversando com um quadro. Eu sou seu próprio silêncio.
E o silêncio é o demônio que te habita nesta gaiola dourada a qual se reduziu
sua vida. Não digo outra coisa além da verdade de que nada em sua existência é
sinônimo de conforto. Que não basta afirmar-se contra o mundo. Mesmo em seu
isolamento você ainda é parte e produto dele na mesma lógica aqui suposta de um
embate severo entre criador e criatura. Eu sou seu diabo....
-Isso tudo é
absurdo! Nem por um segundo tomo a sério suas palavras! Nem acho que isso
existe. Estou sonhando.
-Toda verdade
vivida é sempre uma fantasia unilateral e estúpida. Mas se você dentro do sonho
o percebe como um sonho, simplesmente acorda da fantasia. Então lhe pergunto:
Você acordou e voltou ao vazio da sua realidade vivida?
Vera Aleteia
ficou em silêncio por alguns minutos esperando acordar. Mas isso não
aconteceu... Depois voltou a ofensiva contra aquele aparente delírio:
-Devo estar
enlouquecendo. Mas não farei o jogo da minha loucura. Não continuarei a falar
com você.
- Que assim o
seja. Continuarei falando dentro da sua cabeça. Sou seu demônio mais intimo e ,
consequentemente, parte de você.
- Você não sou
eu.
-Eu não sou o
que você pensa sobre você. Mas estou dentro de tudo aquilo que você é, como
aquilo que escapa a tudo o que você se tornou e queria ser....
-Você não é
nada disso.
-Nada é uma
palavra chave neste dialogo. Por muito tempo você deixou de enfrentar o mundo
achando que poderia ser você fugindo dele. Eu sou você dizendo que você só pode
ser você enfrentando o mundo. Se o mundo não sabe dos seus quadros eles não
existem. Você está em dívida com você.
-Mas eu não
preciso da opinião do mundo sobre a minha arte.
-Mas ela só
pode existir de verdade quando existe de algum modo nos outros. Ou a arte deixa
de ser arte.
_-Isso não faz
sentido. A arte é concretamente os quadros que faço e nos quais me reconheço,
onde reconheço o meu mundo.
-A arte é um disfarce,
uma muleta para você suportar sua falta de mundo. Ela só existe quando você a
transforma em um meio de enfrenta-lo. Sou seu demônio e o fundamento da sua
arte.
- Você não é
nada.
-Eu sou a
goteira pingando e a garrafa vazia de vinho. Eu sou tudo aquilo que você ignora
como verdade viva de si mesma.
-Suma
daqui!!!!!! Eu não te suporto!
-Eu sei....
Esta
imaginária prosa se desdobrou por mais algumas horas até Vera Aletéia entrar em
estado de absoluto desespero. Ás quatro horas da tarde levantou da cama e pulou
pela janela do apartamento dando cabo de sua aparentemente feliz existência.
Sua irmã,
professora de história da arte , organizou uma exposição de seus quadros em um
centro cultural alternativo. A partir de então ela se tornou uma celebridade
nos meios acadêmicos. As notícias de jornais sobre a misteriosa morte da
pintora solitária foi objeto de especulação nas redes sociais e , aos poucos,
detalhes escabrosos de sua vida privada
se fizeram públicos garantindo-lhe uma fama
nunca antes vista. Talvez, meus
caros leitores, o diabo do quadro tivesse certa razão sobre os abismos que
definiam a relação entre a criadora e a criatura daquela imagem alegórica.
Moral da
história: Escute com sabedoria suas fantasias de forma racional para que elas
não te destruam de forma irracional...
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