domingo, 1 de novembro de 2015

MIRNA E O DILEMA DAS JULIETAS

Mirna do Mirar triste era uma quarentona solitária que vivia de alguns bicos para ganhar a vida. Dava aulas de musica e se virava com o pouco  que tinha. Morava em um apartamento de um quarto  onde se apertava com suas coisas .
Tinha dado errado  na vida. Como toda boa ruiva,  desde criança abraçou o caminho da dissidência em relação a tudo aquilo que diziam que ela deveria ser ou fazer. Por isso se apartou da família e nunca foi de ter muitos amigos.
Dividia o mínimo espaço em que vivia com um casal de gatos: caos  e melancolia. Ambos eram pretos e só ela conseguia, sabe-se como, saber quem era quem.
Sua rotina de existência era bastante magra. De segunda a sexta dava aulas de guitarra e piano para adolescentes de classe media. Requentava suas casas e tolerava suas manias, caprichos e falta de disciplina. Não havia um único aluno no qual vislumbrava algum talento ou real interesse pela musica. Não passavam de um bando de garotas e garotos que ainda estavam na fase de experimentar coisas e descobrir a vida sem se prender realmente a nada. Pois que se fodam!- Costumava pensar nossa Mirna.
Sobre seu passado. Bom. Não há muito a dizer. Poucos amores, poucos amigos, família distante e indiferente. Uma vida de merda onde a necessidade de sobreviver sempre foi um imperativo.  Pagar as contas e reproduzir aquela rotina de aulas e horas perdidas dentro de casa vendo TV consumia todo o seu tempo.
Como ela mesma dizia a si mesma. - O que esperar de qualquer coisa?  Nada tenho de interessante e pouco me interessa as pessoas e as coisas. Já lhe bastavam Caos e Melancolia que viviam brigando e miando o tempo todo preenchendo o silêncio do apartamento.
Era um dia nublado de sábado. Seus planos era ficar deitada o tempo todo escutando clássicos dos anos setenta do último século. Um pouco de dance music e rock clássico. Era tudo que precisava. Nem pensar em arrumar a casa ou resolver alguns pequenos problemas pendentes  como o de sair para comprar algo para comer mais tarde ou levar os bichanos ao veterinário para atualizar as vacinas.
Mirna tinha uma paixão especial por Kate Bush. Suas performances nos velhos clips, sua expressão de louca de pedra lhe fascinavam. De algum modo se identificava com o estilo surreal da cantora britânica. Sua musica lhe trazia uma perturbadora sensação de sossego que ela não se atrevia a rotular como alguma forma de paz interior. Era, ao contrário, algo como  não se saber mais direito, uma forma de evasão e devaneio.
Sim. A musica de Kate Bush lhe dizia um universo paralelo onde as coisas podiam ser como deveriam ser segundo seus desejos mais irracionais e o sem cabimento de suas convicções mais intimas. 
Infelizmente a realidade na qual as outras pessoas viviam sempre atrapalhava tudo.  E ela, coitada, não podia viver sem ter contato com os outros, sem ganhar dinheiro para manter aquele buraco que chamava de casa.
Bom. Era raro acontecer. Mas de repente alguém bateu na porta. Mirna foi atender sem sobressalto. Só podia ser sua vizinha Aurora. Uma loura também quarentona que morava sozinha no apartamento ao lado e quando ficava muito deprimida lhe procurava para desabafar.
Quando abriu a porta deparou-se com aquela loura de pijama e um olhar triste que dispensava qualquer palavra.
-Entra logo.- Disse Mirna com um tom de voz irritado.
- Sei que estou lhe incomodando de novo. Mas por favor, não vou me demorar muito. Tenta entender. Se não conversar com alguém acho que enlouqueço.
-Tá sei. Mas só você não percebeu ainda que anda louca de pedra.
-Não fala assim comigo. Eu não mereço. – Respondeu Aurora com voz chorosa enquanto  sem a menor cerimônia tomava assento no sofá vermelho da sala visivelmente maltratado pelos gatos.
-Você não sabe o que me aconteceu.- Anunciou Aurora tirando um cigarro do bolso do pijama.
-Fez uma pausa enquanto  o acendia e depois retomou a fala após uma boa tragada:
- Fui pra cama com uma menina de quinze anos na noite passada.
Após vomitar a frase relaxou um pouco e apoiou as costas no sofá olhando para o teto. Mirna não demonstrou nenhuma surpresa e respondeu em um tom muito banal:
-Tá. Legal. Mas de onde saiu essa menina de quinze anos?
-Ela é filha daquele casal de crentes do andar de baixo. Você deve conhecer a Alice. Deve ter cruzado com ela uma vez ou outra no elevador.
- Sim. Acho que sei quem é. Uma lourinha com cara de anjo e magrinha.
-Ela mesma. Aconteceu tudo muito de repente. Ia saindo outro dia para ir ao mercado e descemos juntas. Começamos a conversar a falar da vida e o assunto não morria. Em vez de ir ao super mercado fomos tomar um café e depois... bem. Ela voltou comigo, fomos pra minha casa, continuamos conversando e sem querer... teve uma hora em que ela me tocou. Ficou um clima estranho e a gente começou a se beijar.
- Mas afinal sobre o que vocês conversaram para de uma hora para outra se tornarem tão... intimas?
-Olha, eu não sei direito. Ela começou a desabafar comigo. Disse o quanto era horrível morar com os pais dela, o quanto eles eram fanáticos e a obrigavam a rezar quase o tempo todo, viver para igreja, e do quanto não aguentava mais. Eu me senti no lugar dela. Quis consola-la.  Mas ai aconteceu alguma coisa a mais.
O fato é que foi lindo. Não me arrependo. Ela é uma menina linda por dentro. Só que os pais não percebem. Ela escreve poesias. Quer ser escritora quando crescer.
- Não quero saber dos detalhes. Me diga o que vai acontecer agora? Pelo que você tá dizendo a coisa entre vocês  tende a ficar mais séria do que um encontro casual.
Aurora fez uma pausa antes de responder. Mirna sentou-se ao seu lado e a fitou ansiosa. Mas Aurora logo retomou a prosa:
-Bem. Os pais dela vão sair hoje a noite para visitar alguém. Combinamos de nos encontrar de novo lá em casa.
-Você precisa tomar cuidado com essa porra. Isso vai acabar dando merda. Se os pais dela descobrem fudeu.
-Eu estou disposta a arriscar e Alice também.- Respondeu Aurora determinada. Depois continuou com uma expressão sonhadora no rosto olhando bem nos olhos de sua interlocutora:
-Minha amiga. Sei que você não tem como fazer ideia do que aconteceu ontem. Mas posso lhe garantir que foi muito especial e nunca imaginei que poderia acontecer uma coisa assim. A gente se sentiu muito bem uma com a outra.
Sabe. Ela era como uma filha. A filha que fui um dia e, ao mesmo tempo, a mulher que eu queria estar me tornando quando tinha a idade dela. Eu a abriguei dentro de mim. Eu a fiz parte de mim e esse sentimento ganhou uma forma física e concreta. Éramos mãe e filha em uma espécie de êxtase. Foi algo realmente maravilhoso. Coisa que a palavra é incapaz de dizer.
Mirna deu um riso e depois respondeu. Tentava ignorar Caos e Melancolia roçando em suas pernas enquanto ela conversava.
-Olha. Acho que nem 
Freud ia entender o que rolou entre vocês. Mas se foi legal, ótimo. Eu só acho que você tá entrando demais de cabeça nisso. Não esqueça que  essa menina tem apenas quinze anos e pode não estar levando a coisa tão a sério.
-Não vai por ai. Posso lhe garantir que ela curtiu tanto quanto eu. Tá rolando uma sintonia entre a gente. Você só sabe o que é viver um encontro depois que o vive, que se desencontra de si através dele. Sabe... de repente o mundo ficou em cores! Antes disso tudo era preto e branco. Não preciso lhe dizer isso. Você me conhece,
-Alice, a vida é mais complicada do que isso.
-A vida só começou a viver ontem pra mim...
-Os pais dela é que vão acabar te matando.
-Eles não vão saber. Podemos fugir pra longe deles.
-Você está ouvindo o que esta dizendo? Perdeu a noção?!
-Você é a última pessoa que pode me condenar...
-Não estou condenando!
-Então porque não está feliz por mim?
- Estou preocupada e isso é bem natural diante do que você está me contando. Estou falando sem estar emocionalmente envolvida, tentando prever onde isso pode dar.
-Acho que é por isso que a maioria das pessoas é infeliz. Elas nunca se arriscam. Sempre escolhem o caminho mais fácil e convencional. A felicidade é a anomalia, a subversão.  A sociedade não foi feita para a felicidade. Nós temos que arrancar isso dela.
-Tá bom. Mas calma. E a menina? O que vai ser dela? De Você?  Você pensa em fugir. Mas ela precisa estudar, ter uma profissão. Não basta você sustenta-la. Além disso ela é menor de idade....
-A gente vai dar um jeito em tudo. Eu sinto.... Hoje a noite quando eu atender a porta, ela vai entrar, me olhar com seus olhos famintos de anjo e vamos nos abraçar, nos explorar... Ela vai me falar as coisas que eu diria se pudesse ser ela na minha idade e eu serei a mãe que ela sempre quis ter. Vou lhe abrigar com meu sexo, com meu desejo e pertencer a ela tal como ela vai me pertencer. Você consegue imaginar toda a paz que isso traz?
Depois de tudo, saudades e mais saudades teremos de nós mesmas até que tudo aconteça de novo. E sempre, e sempre... em uma urgência desesperada de sempre....
Mirna ficou muda diante das palavras da amiga. Não sabia o que responder. Só sabia que a coisa era séria e aquele romantismo todo estava fadado a mergulhar cedo ou tarde no abismo. Nada do que ela pudesse dizer faria ser  diferente.
Era uma situação engraçada. Justo ela que não acreditava em amor e sabia das misérias da intimidade humana, que optou pela solidão e o sossego, se via agora confrontada com a paixão desvairada e repentina de sua vizinha por uma adolescente.
A prosa entre as duas não foi muito além daquele ponto. No dia seguinte Mirna desceu pela manhã e sentou-se na praça em frente ao prédio em que morava. Ficou esperando a tal Alice aparecer. A conhecia mesmo do elevador. Uma branquela magrela de cabelos dourados e lisos que não chamava atenção de ninguém.
Não demorou muito e ela atravessou a rua. Mirla se levantou e foi de encontro a ela.
-Oi! Sou sua vizinha. Não sei se lembra de mim.
-Oi. – Respondeu a menina um pouco surpresa com a abordagem.
-Olha. A Alice me contou o que anda acontecendo entre vocês e eu estou disposta a ajudar.
 Alice olhou em volta para ver se alguém as observava. Não confiava nos porteiros e muito menos nos outros habitantes daquele prédio modesto de nove andares. Com muita timidez na voz perguntou:
-Tem algum lugar onde a gente pode conversar melhor sem ninguém por perto?
-Sim. Podemos ir ao meu apartamento.
Mirna subiu primeiro. Pouco depois Alice para manter discrição. Logo ambas estavam dividindo o mesmo  sofá vermelho da noite passada da conversa com Aurora e, como de lei, sob a atenção de Caos e Melancolia que não paravam de implorar atenção.
-Alice principiou a prosa exibindo uma segurança e maturidade que contrastava com a aparência frágil e juvenil.
-Bem. Aurora me disse que  havia se confessado contigo. No início achei que ela havia se precipitado. Mas acho que foi bom. Pelo o que ela me contou você me subestima um pouco por causa da minha idade. Mas olha só, o que aconteceu entre a gente foi mágico pra mim. Espero que você entenda.
-Eu estou tentando entender. Você deve saber que esta situação de vocês é muito delicada, né?
-Acho que aquilo que a gente tá sentindo uma pela outra é mais do que uma “situação”, é uma descoberta. Ela me fez me sentir mulher, mais do que a pessoa que posso ser em casa, na escola, em qualquer outro lugar. Ela me fez me sentir mulher, me fez ser eu...  Não sei explicar.
-Não precisa me explicar nada. Eu só quero saber como vai ser da que pra frente. Não que seja problema meu esse negócio de vocês duas. Só estou preocupada.
Alice exibiu um leve sorriso antes de responder com a voz infantil que tinha e uma tonalidade afetuosa:
- Eu imagino o que você deve pensar sobre a gente: “Essas duas são loucas.” Sei que minha idade é o que atrapalha. Se não fosse isso tudo seria mais fácil pra gente. Mas as coisas acontecem.,,, E não quero voltar atrás disso. Você não sabe o quanto estou disposta...
Sabe, a felicidade é algo maior do que tudo aquilo que te ensinam na escola e na vida. Eu não nasci pra ser mais um rosto na sociedade e não quero acreditar nisso. Juro! Do fundo do meu coração, Aurora em um único dia me fez sentir minha vida inteira.
-Tá legal. Eu entendo. Mas como vocês vão viver desta maluquice?! Tem uma merda de mundo lá fora  cobrando algo diferente de vocês.
-Sei. Então eu quero cobrar algo diferente do mundo. Você acha que eu ser menor de idade segundo aquilo que dizem que é infância é o problema. Mas o problema pra mim é a Aurora ser mais velha.  É ela quem vai sofrer mais com isso tudo! Mas você não entende...
-Eu entendo sim, porra!!! Só quero ajudar vocês a darem um jeito dessa merda toda dar certo.
- Mas você não acredita na gente.... Acha que nosso afeto é só ilusão.
-Eu não tenho que achar porra nenhuma. Só estou preocupada com a situação.
- Hoje pela manhã, depois de nosso reencontro  na noite passada, fiz uns versinhos pra minha velha Aurora. Deixa eu te dizer:
Ontem nos beijamos como mãe e filha,
Como criança e mulher,
Uma no mais profundo da outra.
Fomos duas, fomos várias, milhares
E apenas duas em êxtase!
Fomos , ao mesmo tempo,
Uma e a outra.
Fomos a vida no indefinido de um prazer
Que escapa a própria vida na identidade absoluta
De nosso sexo.
Mirna  sentiu o rosto corar na falta do que dizer. No undo mais profundo de si mesma queria dizer: Sigam em frente com essa merda. Vamos ver no que dá. Aquilo tudo lhe parecia tão maravilhosamente absurdo, tão sem noção, que um lado seu fazia questão de apostar naquelas duas doidas sem limites e bom senso.
Depois de respirar fundo ousou dizer a Alice com um olhar duplo:
-. –Beleza! Vocês tão certas de alguma forma. Eu aceito. Meu medo é das consequências.
Alice serrou os olhos e lhe disse em tom dramático:
_ Não temo nenhuma consequência daquilo que esta nos acontecendo. Estou cagando para os meus pais e pra família toda! Eu quero ser feliz! E minha felicidade me surpreendeu na Aurora!
Gritava isso   diante de Mirna com os olhos marejados.
A conversa acabou ali. Mirna percebeu que a coisa era realmente séria. Deejou boa sorte a adolescente e, depois que ela se foi ficou pensando sobre a situação.
Alguns dias se passaram sem ela ter notícias das duas. Até que em um fim de tarde quando voltava pra casa depois de ministrar umas aulas de musica, se deparou com uma aglomeração em frente ao prédio em que morava.
Assim que a avistou na calçada em meio aos outros moradores e curiosos, o porteiro  careca e barrigudo, que nunca lhe demonstrou muita simpatia, correu em sua direção  informando aos berros:
-Sua vizinha se matou!!!! Sua vizinha se matou!!!!! E foi encontrada na cama com a filha da dona Divina!!!! Puta que pariu! As duas morreram juntas! Tinha um bilhete no lado da cama!
“ As pessoas falam tanto de amor, mas nada sabem dele.
Diante dos que amam se apavoram, renegam a pureza do laço
Em nome da hipocrisia do modo tosco que sabem gostar.
Nos matamos contra o egoísmo dos outros
E contra os medos de sociedade
Que nos condenavam o amor verdadeiro e sublime.”
Era isso que dizia a  cópia xerocopiada que o porteiro lhe deixou na mão.
Mirna não lhe respondeu nada. Ignorou o porteiro e subiu para o seu apartamento transtornada.
Foi recebida por Caos e Melancolia que lhe miavam pedindo atenção ou comida. ..
Ela sentou no sofá vermelho e se pôs a meditar sobre a sua própria vida.
De algum modo que ela não entendia, não poderia ser a mesma depois daquilo.
Duas mulheres se mataram por um amor proibido no mínimo, difícil de suportar frente as imposições de sociedade. Isso a levava a odiar mais o mundo e as pessoas. Mas não era só isso...
Terminou o dia aos prantos no mínimo universo da cama ouvindo Kath Bush e pensando em si mesma e no vazio absoluto que era a vida em sociedade e a imersão em qualquer representação e vontade de mundo.


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