Mirna do Mirar triste era uma
quarentona solitária que vivia de alguns bicos para ganhar a vida. Dava aulas
de musica e se virava com o pouco que
tinha. Morava em um apartamento de um quarto
onde se apertava com suas coisas .
Tinha dado errado na vida. Como toda boa ruiva, desde criança abraçou o caminho da
dissidência em relação a tudo aquilo que diziam que ela deveria ser ou fazer.
Por isso se apartou da família e nunca foi de ter muitos amigos.
Dividia o mínimo espaço em que
vivia com um casal de gatos: caos e
melancolia. Ambos eram pretos e só ela conseguia, sabe-se como, saber quem era
quem.
Sua rotina de existência era
bastante magra. De segunda a sexta dava aulas de guitarra e piano para
adolescentes de classe media. Requentava suas casas e tolerava suas manias,
caprichos e falta de disciplina. Não havia um único aluno no qual vislumbrava
algum talento ou real interesse pela musica. Não passavam de um bando de
garotas e garotos que ainda estavam na fase de experimentar coisas e descobrir
a vida sem se prender realmente a nada. Pois que se fodam!- Costumava pensar
nossa Mirna.
Sobre seu passado. Bom. Não há
muito a dizer. Poucos amores, poucos amigos, família distante e indiferente. Uma
vida de merda onde a necessidade de sobreviver sempre foi um imperativo. Pagar as contas e reproduzir aquela rotina de
aulas e horas perdidas dentro de casa vendo TV consumia todo o seu tempo.
Como ela mesma dizia a si mesma.
- O que esperar de qualquer coisa? Nada
tenho de interessante e pouco me interessa as pessoas e as coisas. Já lhe
bastavam Caos e Melancolia que viviam brigando e miando o tempo todo
preenchendo o silêncio do apartamento.
Era um dia nublado de sábado.
Seus planos era ficar deitada o tempo todo escutando clássicos dos anos setenta
do último século. Um pouco de dance music e rock clássico. Era tudo que
precisava. Nem pensar em arrumar a casa ou resolver alguns pequenos problemas
pendentes como o de sair para comprar
algo para comer mais tarde ou levar os bichanos ao veterinário para atualizar as
vacinas.
Mirna tinha uma paixão especial
por Kate Bush. Suas performances nos velhos clips, sua expressão de louca de
pedra lhe fascinavam. De algum modo se identificava com o estilo surreal da
cantora britânica. Sua musica lhe trazia uma perturbadora sensação de sossego
que ela não se atrevia a rotular como alguma forma de paz interior. Era, ao
contrário, algo como não se saber mais
direito, uma forma de evasão e devaneio.
Sim. A musica de Kate Bush lhe
dizia um universo paralelo onde as coisas podiam ser como deveriam ser segundo
seus desejos mais irracionais e o sem cabimento de suas convicções mais
intimas.
Infelizmente a realidade na qual
as outras pessoas viviam sempre atrapalhava tudo. E ela, coitada, não podia viver sem ter
contato com os outros, sem ganhar dinheiro para manter aquele buraco que
chamava de casa.
Bom. Era raro acontecer. Mas de
repente alguém bateu na porta. Mirna foi atender sem sobressalto. Só podia ser
sua vizinha Aurora. Uma loura também quarentona que morava sozinha no apartamento
ao lado e quando ficava muito deprimida lhe procurava para desabafar.
Quando abriu a porta deparou-se
com aquela loura de pijama e um olhar triste que dispensava qualquer palavra.
-Entra logo.- Disse Mirna com um
tom de voz irritado.
- Sei que estou lhe incomodando
de novo. Mas por favor, não vou me demorar muito. Tenta entender. Se não
conversar com alguém acho que enlouqueço.
-Tá sei. Mas só você não percebeu
ainda que anda louca de pedra.
-Não fala assim comigo. Eu não
mereço. – Respondeu Aurora com voz chorosa enquanto sem a menor cerimônia tomava assento no sofá
vermelho da sala visivelmente maltratado pelos gatos.
-Você não sabe o que me
aconteceu.- Anunciou Aurora tirando um cigarro do bolso do pijama.
-Fez uma pausa enquanto o acendia e depois retomou a fala após uma
boa tragada:
- Fui pra cama com uma menina de
quinze anos na noite passada.
Após vomitar a frase relaxou um
pouco e apoiou as costas no sofá olhando para o teto. Mirna não demonstrou
nenhuma surpresa e respondeu em um tom muito banal:
-Tá. Legal. Mas de onde saiu essa
menina de quinze anos?
-Ela é filha daquele casal de
crentes do andar de baixo. Você deve conhecer a Alice. Deve ter cruzado com ela
uma vez ou outra no elevador.
- Sim. Acho que sei quem é. Uma
lourinha com cara de anjo e magrinha.
-Ela mesma. Aconteceu tudo muito
de repente. Ia saindo outro dia para ir ao mercado e descemos juntas. Começamos
a conversar a falar da vida e o assunto não morria. Em vez de ir ao super
mercado fomos tomar um café e depois... bem. Ela voltou comigo, fomos pra minha
casa, continuamos conversando e sem querer... teve uma hora em que ela me
tocou. Ficou um clima estranho e a gente começou a se beijar.
- Mas afinal sobre o que vocês
conversaram para de uma hora para outra se tornarem tão... intimas?
-Olha, eu não sei direito. Ela
começou a desabafar comigo. Disse o quanto era horrível morar com os pais dela,
o quanto eles eram fanáticos e a obrigavam a rezar quase o tempo todo, viver
para igreja, e do quanto não aguentava mais. Eu me senti no lugar dela. Quis
consola-la. Mas ai aconteceu alguma
coisa a mais.
O fato é que foi lindo. Não me
arrependo. Ela é uma menina linda por dentro. Só que os pais não percebem. Ela
escreve poesias. Quer ser escritora quando crescer.
- Não quero saber dos detalhes.
Me diga o que vai acontecer agora? Pelo que você tá dizendo a coisa entre
vocês tende a ficar mais séria do que um
encontro casual.
Aurora fez uma pausa antes de
responder. Mirna sentou-se ao seu lado e a fitou ansiosa. Mas Aurora logo
retomou a prosa:
-Bem. Os pais dela vão sair hoje
a noite para visitar alguém. Combinamos de nos encontrar de novo lá em casa.
-Você precisa tomar cuidado com
essa porra. Isso vai acabar dando merda. Se os pais dela descobrem fudeu.
-Eu estou disposta a arriscar e Alice
também.- Respondeu Aurora determinada. Depois continuou com uma expressão
sonhadora no rosto olhando bem nos olhos de sua interlocutora:
-Minha amiga. Sei que você não
tem como fazer ideia do que aconteceu ontem. Mas posso lhe garantir que foi
muito especial e nunca imaginei que poderia acontecer uma coisa assim. A gente
se sentiu muito bem uma com a outra.
Sabe. Ela era como uma filha. A
filha que fui um dia e, ao mesmo tempo, a mulher que eu queria estar me
tornando quando tinha a idade dela. Eu a abriguei dentro de mim. Eu a fiz parte
de mim e esse sentimento ganhou uma forma física e concreta. Éramos mãe e filha
em uma espécie de êxtase. Foi algo realmente maravilhoso. Coisa que a palavra é
incapaz de dizer.
Mirna deu um riso e depois
respondeu. Tentava ignorar Caos e Melancolia roçando em suas pernas enquanto
ela conversava.
-Olha. Acho que nem
Freud ia
entender o que rolou entre vocês. Mas se foi legal, ótimo. Eu só acho que você
tá entrando demais de cabeça nisso. Não esqueça que essa menina tem apenas quinze anos e pode não
estar levando a coisa tão a sério.
-Não vai por ai. Posso lhe
garantir que ela curtiu tanto quanto eu. Tá rolando uma sintonia entre a gente.
Você só sabe o que é viver um encontro depois que o vive, que se desencontra de
si através dele. Sabe... de repente o mundo ficou em cores! Antes disso tudo
era preto e branco. Não preciso lhe dizer isso. Você me conhece,
-Alice, a vida é mais complicada
do que isso.
-A vida só começou a viver ontem
pra mim...
-Os pais dela é que vão acabar te
matando.
-Eles não vão saber. Podemos
fugir pra longe deles.
-Você está ouvindo o que esta
dizendo? Perdeu a noção?!
-Você é a última pessoa que pode
me condenar...
-Não estou condenando!
-Então porque não está feliz por
mim?
- Estou preocupada e isso é bem
natural diante do que você está me contando. Estou falando sem estar
emocionalmente envolvida, tentando prever onde isso pode dar.
-Acho que é por isso que a
maioria das pessoas é infeliz. Elas nunca se arriscam. Sempre escolhem o
caminho mais fácil e convencional. A felicidade é a anomalia, a subversão. A sociedade não foi feita para a felicidade.
Nós temos que arrancar isso dela.
-Tá bom. Mas calma. E a menina? O
que vai ser dela? De Você? Você pensa em
fugir. Mas ela precisa estudar, ter uma profissão. Não basta você sustenta-la.
Além disso ela é menor de idade....
-A gente vai dar um jeito em
tudo. Eu sinto.... Hoje a noite quando eu atender a porta, ela vai entrar, me
olhar com seus olhos famintos de anjo e vamos nos abraçar, nos explorar... Ela
vai me falar as coisas que eu diria se pudesse ser ela na minha idade e eu
serei a mãe que ela sempre quis ter. Vou lhe abrigar com meu sexo, com meu
desejo e pertencer a ela tal como ela vai me pertencer. Você consegue imaginar
toda a paz que isso traz?
Depois de tudo, saudades e mais
saudades teremos de nós mesmas até que tudo aconteça de novo. E sempre, e
sempre... em uma urgência desesperada de sempre....
Mirna ficou muda diante das
palavras da amiga. Não sabia o que responder. Só sabia que a coisa era séria e
aquele romantismo todo estava fadado a mergulhar cedo ou tarde no abismo. Nada
do que ela pudesse dizer faria ser
diferente.
Era uma situação engraçada. Justo
ela que não acreditava em amor e sabia das misérias da intimidade humana, que
optou pela solidão e o sossego, se via agora confrontada com a paixão
desvairada e repentina de sua vizinha por uma adolescente.
A prosa entre as duas não foi
muito além daquele ponto. No dia seguinte Mirna desceu pela manhã e sentou-se
na praça em frente ao prédio em que morava. Ficou esperando a tal Alice
aparecer. A conhecia mesmo do elevador. Uma branquela magrela de cabelos
dourados e lisos que não chamava atenção de ninguém.
Não demorou muito e ela
atravessou a rua. Mirla se levantou e foi de encontro a ela.
-Oi! Sou sua vizinha. Não sei se
lembra de mim.
-Oi. – Respondeu a menina um
pouco surpresa com a abordagem.
-Olha. A Alice me contou o que
anda acontecendo entre vocês e eu estou disposta a ajudar.
Alice olhou em volta para ver se alguém as
observava. Não confiava nos porteiros e muito menos nos outros habitantes
daquele prédio modesto de nove andares. Com muita timidez na voz perguntou:
-Tem algum lugar onde a gente
pode conversar melhor sem ninguém por perto?
-Sim. Podemos ir ao meu
apartamento.
Mirna subiu primeiro. Pouco
depois Alice para manter discrição. Logo ambas estavam dividindo o mesmo sofá vermelho da noite passada da conversa
com Aurora e, como de lei, sob a atenção de Caos e Melancolia que não paravam
de implorar atenção.
-Alice principiou a prosa
exibindo uma segurança e maturidade que contrastava com a aparência frágil e
juvenil.
-Bem. Aurora me disse que havia se confessado contigo. No início achei
que ela havia se precipitado. Mas acho que foi bom. Pelo o que ela me contou
você me subestima um pouco por causa da minha idade. Mas olha só, o que
aconteceu entre a gente foi mágico pra mim. Espero que você entenda.
-Eu estou tentando entender. Você
deve saber que esta situação de vocês é muito delicada, né?
-Acho que aquilo que a gente tá sentindo
uma pela outra é mais do que uma “situação”, é uma descoberta. Ela me fez me
sentir mulher, mais do que a pessoa que posso ser em casa, na escola, em
qualquer outro lugar. Ela me fez me sentir mulher, me fez ser eu... Não sei explicar.
-Não precisa me explicar nada. Eu
só quero saber como vai ser da que pra frente. Não que seja problema meu esse
negócio de vocês duas. Só estou preocupada.
Alice exibiu um leve sorriso
antes de responder com a voz infantil que tinha e uma tonalidade afetuosa:
- Eu imagino o que você deve
pensar sobre a gente: “Essas duas são loucas.” Sei que minha idade é o que
atrapalha. Se não fosse isso tudo seria mais fácil pra gente. Mas as coisas
acontecem.,,, E não quero voltar atrás disso. Você não sabe o quanto estou
disposta...
Sabe, a felicidade é algo maior
do que tudo aquilo que te ensinam na escola e na vida. Eu não nasci pra ser
mais um rosto na sociedade e não quero acreditar nisso. Juro! Do fundo do meu
coração, Aurora em um único dia me fez sentir minha vida inteira.
-Tá legal. Eu entendo. Mas como vocês
vão viver desta maluquice?! Tem uma merda de mundo lá fora cobrando algo diferente de vocês.
-Sei. Então eu quero cobrar algo
diferente do mundo. Você acha que eu ser menor de idade segundo aquilo que
dizem que é infância é o problema. Mas o problema pra mim é a Aurora ser mais
velha. É ela quem vai sofrer mais com
isso tudo! Mas você não entende...
-Eu entendo sim, porra!!! Só
quero ajudar vocês a darem um jeito dessa merda toda dar certo.
- Mas você não acredita na
gente.... Acha que nosso afeto é só ilusão.
-Eu não tenho que achar porra
nenhuma. Só estou preocupada com a situação.
- Hoje pela manhã, depois de
nosso reencontro na noite passada, fiz
uns versinhos pra minha velha Aurora. Deixa eu te dizer:
Ontem nos beijamos como mãe e
filha,
Como criança e mulher,
Uma no mais profundo da outra.
Fomos duas, fomos várias,
milhares
E apenas duas em êxtase!
Fomos , ao mesmo tempo,
Uma e a outra.
Fomos a vida no indefinido de um
prazer
Que escapa a própria vida na
identidade absoluta
De nosso sexo.
Mirna sentiu o rosto corar na falta do que dizer. No
undo mais profundo de si mesma queria dizer: Sigam em frente com essa merda.
Vamos ver no que dá. Aquilo tudo lhe parecia tão maravilhosamente absurdo, tão
sem noção, que um lado seu fazia questão de apostar naquelas duas doidas sem
limites e bom senso.
Depois de respirar fundo ousou
dizer a Alice com um olhar duplo:
-. –Beleza! Vocês tão certas de
alguma forma. Eu aceito. Meu medo é das consequências.
Alice serrou os olhos e lhe disse
em tom dramático:
_ Não temo nenhuma consequência daquilo
que esta nos acontecendo. Estou cagando para os meus pais e pra família toda!
Eu quero ser feliz! E minha felicidade me surpreendeu na Aurora!
Gritava isso diante de Mirna com os olhos marejados.
A conversa acabou ali. Mirna
percebeu que a coisa era realmente séria. Deejou boa sorte a adolescente e,
depois que ela se foi ficou pensando sobre a situação.
Alguns dias se passaram sem ela
ter notícias das duas. Até que em um fim de tarde quando voltava pra casa
depois de ministrar umas aulas de musica, se deparou com uma aglomeração em
frente ao prédio em que morava.
Assim que a avistou na calçada em
meio aos outros moradores e curiosos, o porteiro careca e barrigudo, que nunca lhe demonstrou
muita simpatia, correu em sua direção
informando aos berros:
-Sua vizinha se matou!!!! Sua
vizinha se matou!!!!! E foi encontrada na cama com a filha da dona Divina!!!!
Puta que pariu! As duas morreram juntas! Tinha um bilhete no lado da cama!
“ As pessoas falam tanto de amor,
mas nada sabem dele.
Diante dos que amam se apavoram,
renegam a pureza do laço
Em nome da hipocrisia do modo
tosco que sabem gostar.
Nos matamos contra o egoísmo dos
outros
E contra os medos de sociedade
Que nos condenavam o amor
verdadeiro e sublime.”
Era isso que dizia a cópia xerocopiada que o porteiro lhe deixou
na mão.
Mirna não lhe respondeu nada.
Ignorou o porteiro e subiu para o seu apartamento transtornada.
Foi recebida por Caos e
Melancolia que lhe miavam pedindo atenção ou comida. ..
Ela sentou no sofá vermelho e se
pôs a meditar sobre a sua própria vida.
De algum modo que ela não
entendia, não poderia ser a mesma depois daquilo.
Duas mulheres se mataram por um
amor proibido no mínimo, difícil de suportar frente as imposições de sociedade.
Isso a levava a odiar mais o mundo e as pessoas. Mas não era só isso...
Terminou o dia aos prantos no mínimo
universo da cama ouvindo Kath Bush e pensando em si mesma e no vazio absoluto
que era a vida em sociedade e a imersão em qualquer representação e vontade de
mundo.