segunda-feira, 30 de novembro de 2015

SUPORTE O DIA SEGUINTE

Daqui a pouco o sol nascerá novamente
E faremos de conta que a vida pode ser simples.
Iremos habitar nossos moinhos de vento
E reinventar, mais uma vez este mundo
Que ainda não deu certo.

A vida é isso.
Não se apoquente.
Siga em frente.

Procure não se afundar em ansiedades
Nem tente mais do que lhe parece possível.

As utopias estão mortas
E a realidade já não faz mais sentido.
Dance sobre o cadáver da manhã.
Sorria ao sol por estar vivo.

Não há nenhuma outra solução.

Suporte o dia seguinte...

domingo, 29 de novembro de 2015

AOS POSSESSOS

Acautelai-vos diante da realidade.
Ela é um monstro manso que te devora.
Invoca contra ela  teu mais intimo demônio.
Pois só ele há de te inspirar
Contra os erros que andam soltos
Nos hábitos e nas bocas dos bem sucedidos.
Escava tua miséria e resgata o ouro de teus uivos.
Imponha-se como maldito.
Nenhuma lei, nenhuma ordem,
Te fará escravo.
Dançaras nu sobre o olhar da lua
Até que a madrugada se consuma

E acenda em tuas entranhas uma misteriosa chama.

sábado, 28 de novembro de 2015

LOST



Não me lembro de quando fiz uma refeição decente pela última vez.
Também não me lembro de onde estou vindo e muito menos para onde estou indo.
Só sei que a rua não acaba. A cada passo ela parece crescer um pouco entre tantas janelas e portas que não tiram os olhos de mim.
É tudo diferente agora.... Posso sentir o tempo. Sou invadido por aquela sensação de vitalidade de antigamente. Sou novamente uma criança. Preciso reencontrar todos... Sei que voltei  para aqueles bons tempos de infância. Não estou mais aqui e agora.
A rua tenta me dizer o contrário.
Preciso sair dela.  Tenho que continuar andando.
As pessoas pensam e falam de mais sobre a vida e as coisas. Mas elas são o problema. Acreditam demais no fato de que são quem acham que são.  Mas nenhuma delas é realmente alguém.
As pessoas não cabem no mundo. O mundo as transforma nessas coisas patéticas que andam de um lado para o outro fazendo coisas sem entender direito porquê.
Estava com saudades de casa, do abrigo dos rostos, da casa arrumada, da boa comida simples, do cachorro no quintal. Eu estava morrendo de vontade de voltar para o meu lugar. De ser eu novamente. A rua vai acabar. Só preciso continuar.
Nos últimos tempos vivi em lugares de pouca realidade onde tudo era insípido e estéril, onde eu não era visto e tudo estava arruinado.
Mas vou vencer a rua e voltar ao que eu era. Estou muito perto disso.
Logo estarei novamente lendo quadrinhos enquanto o bolo de banana aça no forno e  aguardo um episódio de seriado começar na TV.  Um pouco de limonada gelada ia cair bem agora...
Preciso vencer logo a rua.
Talvez tudo isso seja um pesadelo e eu acorde logo. Ou talvez o abrigo de casa seja apenas a memória de um sonho distante.
O que sobra de mim é muito pouco para inventar saídas.
Todos aqueles que eu amava estão mortos. Então só me resta morrer também. Já não me cabe fazer parte da comédia humana. Daqui para frente o passado será sempre mais real do que o presente.
Botem fogo nos travesseiros. Levem o onírico para as ruas. Dancem em praça pública e provem o transe dos danados! Não há outra escolha.
Abandonem as ilusões imbecis de felicidade. Rompam o torpor dos mortos vivos.
Desde o início estamos todos mortos. A morte é a única estética possível.
Os jovens já não são mais jovens. Apenas possuem mais tempo e mais recursos do  que eu.
Sangro na cidade mutilada como um vidente.
A rua não acaba. ...
Ouço a musica de mim enquanto os passos findam.
Daqui a pouco será apenas a rua e suas portas e janelas que a tudo espreitam.
Vou dormir e destruir de vez a consciência. Afundar no abismo do silêncio.
Mas a rua não acaba...

Sigo adiante.

A POESIA BEAT E A FUNÇÃO SOCIAL DO POETA


Uma das características mais marcantes da poesia Beat foi o resgate da palavra falada e cantada, a valorização do encontro entre o poeta e a plateia através de espetáculos grupais que traduziam a necessidade de tal poesia  transcender a forma livro, a palavra prisioneira da folha de papel. Livre do livro, os poemas se tornam uma coisa viva, uma entidade que transcende a própria palavra na mobilização humana em torno do espetáculo da poesia.

Allen Ginsberg é certamente a estrela maior de tal fórmula poética. Seu poema  O UIVO ( Howl) é o equivalente da prosa de Kerouac em On the Road. E foi também ele o responsável pela construção de uma ponte entre a  literatura beat dos anos 50 e a contra cultura dos anos 60 tantos nos Estados Unidos quanto na Europa Ocidental. Ele esteve presente em marchas de protesto, festivais de musica, etc.

Sua poesia, entretanto, automática e apocalíptica, guarda em seu ritmo o sabor da improvisação do jazz, os ritmos da respiração e do próprio corpo em movimento, mais do que a influência dadaísta e surrealista.


Essencialmente oral a poesia beat busca resgatar a função social do poeta, sua capacidade de compartilhar experiências e, em fins dos anos 50 e 60, nos Estados Unidos e Europa, isso significava mudança e febre juvenil. Representava a generosa aposta na reinvenção cotidiana da vida no além dos lugares comuns da sociedade estabelecida e dos comportamentos pré moldados pela tradição e pelo poder.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

ERROS

Não tenho a pretensão de ser perfeito ou delicado. Sei que cometerei muitos erros, tal como todos a minha volta. Na verdade nos relacionaremos através da dialética de nossos erros em meio ao fluxo de equívocos coletivos que sustentam o acontecer social.

De todos os modos estamos desde o princípio condenados ao desentendimento, ao esvaziamento de nossas melhores intenções. Longe de mim esperar que de algum modo isso seja diferente.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A METAMORFOSE DE KAFKA E A IMPLOSÃO DA INDIVIDUALIDADE


O impasse entre o eu e o mundo, o dissolver-se na persona social, ou a desconstrução do próprio eu, é tudo aquilo que ainda pode nos revelar como indivíduos ...
Vivemos de auto ilusões, de consensuais mentiras  cotidianas e funcionais.

“... quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao seu lado e rolou diante dele. Era uma maça; a segunda passou voando logo em seguida por cima dele. Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era inútil, pois o pai tinha decidido bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê, ele havia enchido os bolsos de maçãs e, por enquanto, sem mirar direito, as atirava uma a uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam como que eletrizadas pelo chão e batiam umas nas outras. Uma maçã atirada sem força raspou as costas de Gregor, mas escorregou sem causar danos. Uma que logo se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele. Gregor quis continuar se arrastando, como se a dor, surpreendente e inacreditável, pudesse passar com a mudança de lugar; mas ele se sentia como se estivesse pregado no chão e esticou o corpo numa total confusão de todos os sentidos...”


KAFKA in A METAMORFOSE

SOBRE A METAMORFOSE DE KAFKA


A METAMORFOSE....

“Não é necessário sair de casa. Permaneça em sua mesa e ouça. Não apenas ouça, mas espere. Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. Então o mundo se apresentará desmascarado. Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés."
KAFKA

O MUNDO É TÃO FRÁGIL QUANTO UMA FOLHA DE PAPEL.
NELE CABE O TEXTO DA VIDA
E TODO O ILEGÍVEL QUE RESIDE
NO FUNDO DE CADA DISCURSO ,
DE CADA PREMISSA GRAMATICAL...

sábado, 21 de novembro de 2015

A LEI DA ATRAÇÃO

Não foi nada daquilo que eu esperava.
Meu pau entre tuas pernas abertas
E você ali submissa e desfalecida
Gemendo e dizendo coisas sem nexo.
Me fazia mal gostar daquilo,
Não conseguir parar.
Sabia que aquilo destruiria
Todas as nossas expectativas.
Nos condenávamos
A  constituir mais um casal medíocre.
Seriamos só mais um caso mal resolvido

De tesão impensado.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

SOBRE O ILEGÍVEL

O jogo das palavras,
o dizer impreciso das emoções
através das curvas do  pensamento,
não são suficientes,
não bastam a vontade
de dar forma a este não sentido
que polui todas as coisas que sinto.
O ilegível contamina tudo,
silencia as coisas
e a realidade, de repente,

quase não existe.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

SOMOS IRRACIONAIS

A virtude do irracional
é a transcendência do bem e do mal,
a virtude dos vícios elevada
a condição de conhecimento vivo
dos mais profundos abismos
de nossa condição humana.
Iludem-se aqueles que julgam o humano
algo que se define pela razão
ou por qualquer coisa que seja
portadora de um sentido,
de um significado.
O ser humano é apenas
um arranjo de moléculas,
uma situação provisória da matéria.

Sua condição é simplesmente irracional. 

domingo, 15 de novembro de 2015

ABRIGADO NA TEMPESTADE


Não sei mais o que ainda pode ser dito de “positivo” sobre esta estranha coisa chamada vida. Ela nunca teve o menor sentido,  nunca nos ofereceu qualquer certeza quanto ao que somos e nunca soubemos direito o que fazer com ela. Apenas nos tornamos mais complexos na arte da sobrevivência e vivemos em sociedade. Não que isso seja uma solução.

A sombra dos meus desejos, me desfaço no deserto dos meus degredos. Não sou bicho, não sou humano. Ainda não vivi meu segredo, o melhor de minha consciência de mundo. Não passo de um esboço, sempre provisório e perecível de mim mesmo.

Aos que tem respostas, aos que dançam diante do espelho, desejo boa sorte até o abraço desconstrucionista da morte.

Já não espero companhias. Estou farto de ter companhias e ver o mundo através dos olhos dos outros. Não serei ofuscado pelas certezas alheiras.

Deixem-me provar o vento, o relâmpago e a tempestade contra o conforto de todas as ordens.


sexta-feira, 13 de novembro de 2015

TORNE-SE UM INDIVÍDUO

A compulsória insatisfação pessoal dos indivíduos reduzidos à condição de consumidores é o que corrói sua vontade como produtores. É o  que cria o vazio, aquilo que nos reduz a uma massa amorfa de indivíduos sucumbidos diante das mais diversificadas formas de miséria psicológica.

A sociedade atual nos reduz a uma multidão sem rosto. Por isso cada um deve arrancar dela, a seu próprio modo, seu mínimo quinhão de individualidade e autenticidade. Mas isso se dá cotidianamente  através de um questionamento, desconstrução e reaprendizado de si mesmo a margem de tudo aquilo que até agora nos ensinaram a ser.

Somos produtores, criadores e responsáveis por nós mesmos.

Somos o além do humano...

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

ESCUTE MEU CETICISMO


Sempre falta alguma coisa em nossas vidas banais.
Você pode preencher este sentimento
Com tudo aquilo que pensa ser  mais razoável.
Mas sempre vai  faltar alguma coisa.
Viver é um escândalo,
Um absurdo,
Que exige muita criatividade e determinação
Para aceitar que o mais profundo
De toda realidade
Não passa apenas de uma confortável ilusão.
Siga em frente, pense,
E se necessário grite.
Tudo que você percebe lá fora
Se torna parte de si mesmo.
Então cuidado com aquilo que você espia
E te inspira.
O mundo não cabe na sua cabeça.

Mas sua cabeça cabe no mundo.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

A PRIVACIDADE DOS PENSAMENTOS

Quem ainda deseja experimentar a privacidade de seus próprios pensamentos deve, antes de mais nada, aprender a fugir de si mesmo, procurar o refúgio de algum silêncio e despir-se de tudo aquilo que até então viveu e aprendeu
Pois os pensamentos não se misturam a vontades e desejos, se contrapõe as nossas auto representações mais intimas e tem por vocação o abstrato de nossa essencial incerteza das coisas.

A intimidade do pensamento é um tanto quanto absurda, pois sempre pressupõe o insensato, o que não pode ser domesticado por tudo aquilo que nos limita a realidade. A intimidade do pensamento é a loucura. È quando tudo aquilo que somos e não sabemos ganha voz, afogando o ego e a razão no vasto oceano das fantasias selvagens através das quais o mundo se torna ilegível.

A privacidade do pensamento é vivida apenas quando as palavras deixam de fazer sentido, quando o corpo pensa e se revela como sendo a nossa própria consciência das coisas através da gramática do imagético, do nonsense e do caos mais criativo.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

SUSTO FILOSÓFICO

Não era uma questão de bom senso,
nem mesmo de sentimentos, convicções,
imaginações ou ilusões.
Era apenas aquele susto gratuito
com a realidade,
aquele desespero manso,
que as vezes nos surpreende diante dos fatos.
Era apenas o absurdo batendo novamente
a porta de minhas mínimas convicções.
ável

ou boas notícias.
As coisas são apenas isso que você esta vendo e sentindo,

um profundo e constante arruinar-se absoluto através do tempo e do espaço.

sábado, 7 de novembro de 2015

O ALÉM DO HUMANO

Precisamos acordar do sonho da sociedade,
Enterrar a fantasia moderna do contrato social,
Redescobrir a consciência do mundo
Como verdade do corpo e das sensações imediatas de fugaz prazer.
Precisamos dançar em nossos pensamentos,
Embriagar a razão.
Precisamos reparar os erros da falecida e medieval ideia de cristandade.
Precisamos regar as plantas do jardim de casa,
Amar os bichos e sonhar com as estrelas.
Precisamos de qualquer coisa nova
Que não seja o futuro da humanidade.
Precisamos  jogar ao chão todo passado possível,
Toda verdade,
Para gritar que somos apenas relâmpagos
Em meio a tempestade da vida da espécie.

Precisamos acordar de Ser....

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

NOTA SOBRE A IRREALIDADE DE TODOS NÓS

Nenhuma verdade é maior do que o nosso falso sentimento de que uma realidade existe, e que é possível viver da mentira de ego que somos em meio ao caos de cada um de nós.

Minhas imaginações não cabem em minhas palavras, são verdades que através dos tos transcendem a s gramáticas e o dizer absurdo das coisas.


Mas, infelizmente, as pessoas outras são escravas da aventura do real que não nos define....

O DIABO DENTRO DO QUADRO

Vera  Aletéia era uma jovem senhora de quarenta e poucos anos solteirona e sem grandes expectativas quanto ao futuro, era funcionária pública em  uma repartição qualquer  e ganhava um bom dinheiro  como pintora . Tinha uma boa vida, morava em barro nobre e pouco se importava com a solidão. Muito pelo contrário.  Vivia muito bem com seus sete gatos e detestava de lidar com pessoas. Como vivia dizendo, pessoas são perda de tempo. Estão sempre com problemas e achando que você deve estar sempre a concordar com elas.
Sua rotina era simples: trabalho casa, casa trabalho. Aos fins de semana um pouco de vinho e boa musica de madrugada entre as quatro paredes do seu apartamento. Era quando se permitia render-se a fantasia e produzia a maioria de seus quadros.
Essa loura que, na juventude era comparada a musas do cinema e despertava o desejo de muitos homens bem colocados que sempre fez questão de desprezar sem  a mínima delicadeza, no fundo se orgulhava disso. A solidão , não ter filhos e nem ser mãe de família tinha sido uma escolha sua. E nem por um instante se arrependia disto. Filhos? Para quer filhos?! Tinha sua própria vida e isso era mais do que precisava. Filhos são pura dor de cabeça e desassossego. Coisa que as pessoas mais inteligentes evitam.
A concretização de sua própria vida era tudo que lhe importava. Via como uma obrigação consigo mesma que deveria ser estendida a todas as mulheres que prezam acima de tudo seu bem estar pessoal e pouco se importam com as exigências do mundo ou da sociedade.
Sabia que nenhum homem lhe aceitaria por muito tempo sendo cheia de opiniões do jeito que era. Os homens não vivem se mirando em espelhos, mas na pratica são mais vaidosos do que as mulheres. A diferença é que  sua vaidade passa pela ditadura de suas vontades e caprichos mesquinhos. Geralmente fazem das mulheres no plano privado as principais vítimas de seus narcisismo.
Era uma bela manhã de domingo e havia acordado com o bom sentimento despertado por um quadro que terminara na madrugada anterior. Era a alegórica imagem de uma mulher nua sobre um unicórnio negro de olhos vermelhos em meio a um infinito de cores caóticas e vivas . Ao contrário das interpretações mais previsíveis, não queria dizer com aquela imagem qualquer coisa sobre liberdade. Mas apenas a indiferença de si mesma em relação as pessoas e ao mundo, a própria realidade. Tratava-se de um tributo a fantasia e ao intimismo como regra fundamental da vida. Isso era bem a sua cara.
Bebeu um pouco de vinho para celebrar a pintura. Uma taça levou a outra taça e em pouco tempo foram duas garrafas. Já quase adormecia na cama quando ouviu uma voz dizendo:
-EI! Ei!!!! Você!!!!!Olhou em volta assustada  e não viu ninguém. Foi quando percebeu para sua surpresa e perplexidade que a voz saia do referido quadro que repousava aos pés da cama como precioso objeto de contemplação.
-Prezada Vera Aletéia que me ofertou com a vida simplória de uma tela que só existe aos olhos dos outros. Por favor me leve daqui! Quero estar em exposição! Ser vista por muitos olhos.
Vera não acreditava naquilo. Muito menos no desejo da voz que contrariava tudo aquilo que julgava definir sua arte. Desconsiderando o gritante absurdo do fato começou a dialogar com a mulher do quadro:
- Mas que merda você esta dizendo? Pinto para o prazer dos meus próprios olhos. Para minha própria degustação.
-Sei que sou sua criatura. E por isso mesmo tenho minhas próprias vontades. Só lhe peço que as obedeça.
-Como pode a criatura contrariar o criador?! Eu sei mais sua vontade do que você. Você não passa de uma expressão de sentimentos que guardo por dentro. E esse seu pedido não tem cabimento.
- Sei mais sobre o cabimento de minhas palavras do que você as suas. Sou tão produto de suas vontades que realizo sua mais profunda vaidade. Mesmo que inconfessa. Exijo olhares.
-Você não exige nada!
-Eu exijo tudo! Pois sou sua imagem e semelhança e personifico você como seu outro mais oculto.
-Meu outro mais oculto é falsidade e miragem. Você é apenas o que eu queria dizer.
-E quem disse que você tem algum controle sobre aquilo que diz Aleteia? Seu izer é franco mas não comporta tudo aquilo que você é e ignora.
- Mas que loucura é essa?!!!!!!- Berrou Vera Aletéia ainda deitada  com os olhos sobre o quadro.
-Lhe direi a verdade. Você não está conversando com um quadro. Eu sou seu próprio silêncio. E o silêncio é o demônio que te habita nesta gaiola dourada a qual se reduziu sua vida. Não digo outra coisa além da verdade de que nada em sua existência é sinônimo de conforto. Que não basta afirmar-se contra o mundo. Mesmo em seu isolamento você ainda é parte e produto dele na mesma lógica aqui suposta de um embate severo entre criador e criatura. Eu sou seu diabo....
-Isso tudo é absurdo! Nem por um segundo tomo a sério suas palavras! Nem acho que isso existe. Estou sonhando.
-Toda verdade vivida é sempre uma fantasia unilateral e estúpida. Mas se você dentro do sonho o percebe como um sonho, simplesmente acorda da fantasia. Então lhe pergunto: Você acordou e voltou ao vazio da sua realidade vivida?
Vera Aleteia ficou em silêncio por alguns minutos esperando acordar. Mas isso não aconteceu... Depois voltou a ofensiva contra aquele aparente delírio:
-Devo estar enlouquecendo. Mas não farei o jogo da minha loucura. Não continuarei a falar com você.
- Que assim o seja. Continuarei falando dentro da sua cabeça. Sou seu demônio mais intimo e , consequentemente, parte de você.
- Você não sou eu.
-Eu não sou o que você pensa sobre você. Mas estou dentro de tudo aquilo que você é, como aquilo que escapa a tudo o que você se tornou e queria ser....
-Você não é nada disso.
-Nada é uma palavra chave neste dialogo. Por muito tempo você deixou de enfrentar o mundo achando que poderia ser você fugindo dele. Eu sou você dizendo que você só pode ser você enfrentando o mundo. Se o mundo não sabe dos seus quadros eles não existem. Você está em dívida com você.
-Mas eu não preciso da opinião do mundo sobre a minha arte.
-Mas ela só pode existir de verdade quando existe de algum modo nos outros. Ou a arte deixa de ser arte.
_-Isso não faz sentido. A arte é concretamente os quadros que faço e nos quais me reconheço, onde reconheço o meu mundo.
-A arte é um disfarce, uma muleta para você suportar sua falta de mundo. Ela só existe quando você a transforma em um meio de enfrenta-lo. Sou seu demônio e o fundamento da sua arte.
- Você não é nada.
-Eu sou a goteira pingando e a garrafa vazia de vinho. Eu sou tudo aquilo que você ignora como verdade viva de si mesma.
-Suma daqui!!!!!! Eu não te suporto!
-Eu sei....
Esta imaginária prosa se desdobrou por mais algumas horas até Vera Aletéia entrar em estado de absoluto desespero. Ás quatro horas da tarde levantou da cama e pulou pela janela do apartamento dando cabo de sua aparentemente feliz existência.
Sua irmã, professora de história da arte , organizou uma exposição de seus quadros em um centro cultural alternativo. A partir de então ela se tornou uma celebridade nos meios acadêmicos. As notícias de jornais sobre a misteriosa morte da pintora solitária foi objeto de especulação nas redes sociais e , aos poucos, detalhes  escabrosos de sua vida privada se fizeram públicos garantindo-lhe uma fama  nunca antes vista.  Talvez, meus caros leitores, o diabo do quadro tivesse certa razão sobre os abismos que definiam a relação entre a criadora e a criatura daquela imagem alegórica.

Moral da história: Escute com sabedoria suas fantasias de forma racional para que elas não te destruam de forma irracional...

A CORPOREIDADE DOS SENTIMENTOS

A corporeidade dos sentimentos
transcende os pensamentos,
é emoção fisicamente manifesta,
transmutada em movimento intimo
e concreto.
O corpo desobedece certezas
e desafia pensamentos,
deixa-se inspirar pelo desejo
que nos transcende e usa
na realização de si mesmo.

A NATURALIDADE DO SEXO

Não precisávamos de muitas palavras,
do dizer vazio e hipócrita das cerimônias.
Alguns olhares bastavam  para desfazer o interdito.

Tudo entre nós sempre foi simplesmente objetivo.
Nos livramos das roupas e nos agarramos
na alternância de beijos e lambidas.

Nossos corpos gritavam
quase sem controle
na febre da intimidade.

O gozo era nossa única medida.

MEUS DESACONTECIMENTOS

Ainda me lembro do tempo
em que nada foi possível,
de todos os bons desacontecimentos
da minha breve existência.
Tanta, mas tanta coisa não me foi possível
que não posso enumera-las aqui.
Merecia ser escrita
uma vasta biografia sobre o que no meus destino
nunca foi,
Nunca será.
Pois são estes interditos

a prima matéria dos meus dias vividos.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

À SOMBRA DAS JULIETAS

Mais um dia começava na vida vazia de Mirna do Mirar Triste. Abrira os olhos e ficou mirando o teto retardando o ato mecânico de se levantar. Afinal, o que poderia esperar daquele dia?
Já havia se passado uma semana do suicídio de Aurora e Alice. Haviam sido encontradas abraçadas  sobre a cama, tinham as feições serenas e pareciam apenas compartilhar um bom sonho. Mas a verdade é que haviam ingerido juntas algum tipo de veneno para dar cabo de tudo, fugir das complicações que lhe traria o amor proibido que as  uniu por capricho do acaso.
No prédio não se falava de outra coisa. Todos os moradores estavam indignados com o acontecido e solidários aos pais de Alice que se perguntavam como aquilo podia ter acontecido. Aurora ficou sendo a vilã da história aos olhos de todos. Acusavam-na de ter seduzido a inocente Alice. Ninguém desconfiava que Mirna havia testemunhado em primeira mão aquela história de amor de dois dias podendo acrescentar as fantasiosas versões que se espalhavam um testemunho privilegiado dos acontecimentos. Mas ela não via nenhum sentido em fazê-lo. Não mudaria nada.
O casal de gatos  Caos e Melancolia miavam na beira da cama exigindo sua cota de ração matinal. Diante de seus incessantes apelos Mirna finalmente se levantou. Satisfez a vontade dos bichanos, tomou um banho e depois se arrumou mecanicamente. Eram um pouco mais de onze horas. O sol já estava a pino e seus raios invadiam a sala pela janela que havia dormido aberta.
Alguém bateu na porta para a surpresa de nossa ruiva. Não fazia ideia de quem poderia ser. Apenas Aurora costumava fazê-lo e, agora que estava morta, julgava-se livre de visitas inesperadas.  Quando abriu a porta deparou-se com uma jovem loura muito semelhante a Alice.  Ela apresentou-se como Sophia, sua irmã mais velha.
-Desculpa incomodar. Mas precisava muito falar com você.- Foi se justificando a jovem.
- Tá legal. Entra ai.
Sophia vestia uma camiseta preta estampada com a capa de Heaven and Hell do Black Sabbath. Entrou e tomou acento no sofá vermelho. Mirna sentou-se ao seu lado. Já fazia ideia do assunto, apesar de surpreendida pela novidade de que Alice possuía uma irmã. Lhe pareceu apropriado começar a conversa.
-Imagino que tal como eu você sabe de tudo...
-Sim. Minha irmã me contou o que estava acontecendo. Eu só não sabia o que elas pretendiam fazer...
-Pois é. Eu também não...
-Bom... Eu também sou lésbica e me sinto um pouco culpada pelo que aconteceu. Talvez minha irmã não tivesse feito aquilo se eu não...
Mirna não lhe deixou terminar a frase e antecipou a resposta com um tom de voz sereno e acolhedor:
-Não diga bobagem. O que aconteceu não é culpa sua. De forma alguma... Elas se apaixonaram de uma hora pra outra e não aguentaram o tranco. Infelizmente... Coisa de tesão. Por isso não me deixo levar por essas coisas. A gente sempre se fode com isso.
-Não fale assim. Minha irmã me falou sobre o que estava sentindo. Não foi de uma hora pra  outra. Ela já se sentia atraída pela quarentona já tinha algum tempo. Sempre que se encontravam no elevador ela pensava em arrumar alguma desculpa para se aproximar...
Sabe. As pessoas todas pensam como macho, que sexo é o que leva a paixão ou a gostar de alguém. Mas isso é uma mentira. As pessoas gostam de acreditar nisso. Mas não é verdade.
- Para mim é tudo fisiológico- Retrucou Mirna. Não estava gostando daquela conversa. Mas não tinha como fugir dela. Caos e Melancolia já estavam por ali tentando ganhar alguma atenção miando e roçando nos pés das duas.
- Acho que no fundo você sabe que não é assim. Duvido que realmente pense como um marcho partriacal e capitalista que reduz o amor a um comercio de tesão e atenção mutua.
-Mas, afinal, do que você esta falando?
-Sou formada em sociologia....
-E eu não leio livros. Só tenho tempo pra TV. Só pra te lembrar: Nós somos duas estranhas. Acabamos de nos conhecer e eu ainda não sei porque você me procurou. Espero que não tenha sido para falar sobre sexo.
-Desculpa! Eu só precisava conversar com alguém sobre o que aconteceu... Minha irmã tinha falado de você. Então, me pareceu uma boa ideia bater na sua porta. Vai ver que eu estava errada.
-Não estou te mandando embora, certo? Só acho que esse assunto é totalmente sem cabimento.
-sei que esse é o tipo de coisa sobre a qual as pessoas não costumam falar. Elas preferem ignorar e tornar o assunto invisível, assim como todo fato e realidade humana que diz respeito a ele. Não acho isso legal. O que aconteceu a minha irmã e a sua amiga prova isso.
-Está bem. Continue. Vamos ver até onde você vai chegar. Só acho que tudo isso é coisa da sua cabeça.
--Tudo bem se você prefere jogar as regras do jogo e pensar como todo mundo estar condicionado a pensar. Mas isso não dá certo para muita gente. As pessoas acham, por exemplo, que minha família é pacata, tradicionalmente bem resolvida e feliz. Mas isso é uma mentira. Meu pai é um neurótico religioso que quer controlar a vida de todo mundo, minha mãe uma bipolar e a Alice não foi o primeiro caso de suicídio. Meu irmão mais velho se matou depois que entrou para a faculdade e começou a ter brigas feias com meu pai. Ele cismou de fazer filosofia. Mas meu pai achava que filosofia não passa de um sinônimo para teologia e transformou a vida dele num inferno. Chegou a um ponto em que ele não aguentou...
- Eu sinto muito. Queria poder ajudar.
-Você já ajuda me escutando um pouco. Mas, sem ironia, podia me ajudar mais se fosse do tipo que lesse livros.
Mirna sorriu com a resposta de Sophia. A conversa foi ficando mais descontraída a partir dali.  Melancolia pulou no colo da dona em uma estratégia radical para conseguir um pouco de atenção. Caos não deixou barato e fez o mesmo pulando no colo da visitante. A prosa  prolongou-se por algumas horas.
Nas semanas que se seguiram as visitas de Alice se tornaram frequentes. Falavam absolutamente sobre tudo e se divertiam muito uma com a outra. Mirna não era de ter muitos amigos e se orgulhava disso. Mas estava gostando da companhia de Sophia.
Não demorou muito para começarem a fazer outras coisas juntas, como ir a exposições e alguns shows de rock. Sophia escolhia as atividades e apresentava seu mundo particular a Mirna que se sentia cada vez mais envolvida pelos interesses e questões da nova amiga.
Uma noite as duas chegaram tarde e Sophia preferiu dormir no apartamento de Mirna sabendo que  teria problemas em casa  por voltar tão tarde. As duas dividiram umas taças de vinho e, de repente, assim bem de repente, se enlaçaram em um beijo de tirar o fôlego. Depois foram pra cama e deram asas a noite uma através da outra.
No dia seguinte acordaram com aquela ressaca moral, mas  nem um pouco surpresas com o que havia acontecido. Era impossível não lembrar de Alice e Aurora. Agora eram julietas também. Mas não perderiam o rumo da situação como aquelas duas imaturas.
Sophia falou pelo interfone com a mãe e comunicou sua decisão de sair de casa. Provisoriamente moraria com Mirna. A mãe ficou evidentemente chocada e preocupada em como expor o fato ao marido.  Para evitar conflitos e baixarias as duas decidiram viajar as pressas.
Foram para a casa de uma antiga colega de faculdade de Sophia passar algum tempo. Caos e Melancolia não gostaram da ideia de viajar e deixar a zona de conforto de seu pequeno território. Mas logo se adaptaram a casa de veraneio e seus jardins.
Mirnia e Sophia estavam agora em outra cidade, conhecendo pessoas e saindo de seus lugares comuns enquanto se descobriam como um casal.
Mas não era um final feliz. A vida , afinal, não é feita de finais  felizes.
As coisas aconteciam de maneira tão insólita e espontânea que era difícil dizer que rumos iriam tomar suas vidas daqui para frente. Por enquanto tudo parecia um sonho. Mas é claro que a realidade, quando se confunde com o sonho, é porque já não temos o mínimo controle da situação e muito menos fazemos ideia do que realmente esta acontecendo.
Em um fim de tarde a beira mar as duas abordaram o assunto:
-E agora? Qual o próximo passo?- Indagou Mirna a companheira com o olhar mergulhado no mar.
-Vamos viver um dia de cada vez. Não planejar muito, esperar pouco...
- As vezes acho que você esta me ensinando as piores coisas do mundo.
-Que bom. Pois eu acho que você esta gostando. Mas a liberdade pesa e as vezes até nos oprime quando ser livre não é uma regra ou uma convenção.
-Eu sempre achei que éramos escravos de nossas vidas. Talvez Aurora e Alice pensassem assim também.
-Mas agora você sabe que só somos escravos de nossa liberdade. Ela é um vício. Falando nisso acho que é hora de voltar aquele assunto do dia em que nos conhecemos: Você ainda acha que tudo é fisiológico?
Mirna demorou um pouco para responder. Não sabia direito o que dizer.
- Eu acho que tudo é possível. Principalmente o improvável. Nós duas somos o improvável. Aquilo que não costuma acontecer e, entretanto, depois que acontece parece banal.
-Enquanto isso, na casa da amiga de Sophia, Caos e Melancolia faziam as unhas em um sofá que não era vermelho. Ainda não haviam se habituado ao novo ambiente. Mas a curiosidade era mais forte do que o medo. Destemidamente exploravam o novo espaço.
Alice era sempre lembrada através de um de seus poemas de adolescência:

METAMORFOSES DE UMA BORBOLETA

Vivo tempos de mudanças internas
E reinvenções externas.
Já sou quase uma borboleta.
Mas não me basta o jardim.
Quero explorar o céu,
Ir além de mim mesma.
Talvez, quem sabe,
Até tocar o sol.
Nada me basta,

Nada me define.

domingo, 1 de novembro de 2015

MIRNA E O DILEMA DAS JULIETAS

Mirna do Mirar triste era uma quarentona solitária que vivia de alguns bicos para ganhar a vida. Dava aulas de musica e se virava com o pouco  que tinha. Morava em um apartamento de um quarto  onde se apertava com suas coisas .
Tinha dado errado  na vida. Como toda boa ruiva,  desde criança abraçou o caminho da dissidência em relação a tudo aquilo que diziam que ela deveria ser ou fazer. Por isso se apartou da família e nunca foi de ter muitos amigos.
Dividia o mínimo espaço em que vivia com um casal de gatos: caos  e melancolia. Ambos eram pretos e só ela conseguia, sabe-se como, saber quem era quem.
Sua rotina de existência era bastante magra. De segunda a sexta dava aulas de guitarra e piano para adolescentes de classe media. Requentava suas casas e tolerava suas manias, caprichos e falta de disciplina. Não havia um único aluno no qual vislumbrava algum talento ou real interesse pela musica. Não passavam de um bando de garotas e garotos que ainda estavam na fase de experimentar coisas e descobrir a vida sem se prender realmente a nada. Pois que se fodam!- Costumava pensar nossa Mirna.
Sobre seu passado. Bom. Não há muito a dizer. Poucos amores, poucos amigos, família distante e indiferente. Uma vida de merda onde a necessidade de sobreviver sempre foi um imperativo.  Pagar as contas e reproduzir aquela rotina de aulas e horas perdidas dentro de casa vendo TV consumia todo o seu tempo.
Como ela mesma dizia a si mesma. - O que esperar de qualquer coisa?  Nada tenho de interessante e pouco me interessa as pessoas e as coisas. Já lhe bastavam Caos e Melancolia que viviam brigando e miando o tempo todo preenchendo o silêncio do apartamento.
Era um dia nublado de sábado. Seus planos era ficar deitada o tempo todo escutando clássicos dos anos setenta do último século. Um pouco de dance music e rock clássico. Era tudo que precisava. Nem pensar em arrumar a casa ou resolver alguns pequenos problemas pendentes  como o de sair para comprar algo para comer mais tarde ou levar os bichanos ao veterinário para atualizar as vacinas.
Mirna tinha uma paixão especial por Kate Bush. Suas performances nos velhos clips, sua expressão de louca de pedra lhe fascinavam. De algum modo se identificava com o estilo surreal da cantora britânica. Sua musica lhe trazia uma perturbadora sensação de sossego que ela não se atrevia a rotular como alguma forma de paz interior. Era, ao contrário, algo como  não se saber mais direito, uma forma de evasão e devaneio.
Sim. A musica de Kate Bush lhe dizia um universo paralelo onde as coisas podiam ser como deveriam ser segundo seus desejos mais irracionais e o sem cabimento de suas convicções mais intimas. 
Infelizmente a realidade na qual as outras pessoas viviam sempre atrapalhava tudo.  E ela, coitada, não podia viver sem ter contato com os outros, sem ganhar dinheiro para manter aquele buraco que chamava de casa.
Bom. Era raro acontecer. Mas de repente alguém bateu na porta. Mirna foi atender sem sobressalto. Só podia ser sua vizinha Aurora. Uma loura também quarentona que morava sozinha no apartamento ao lado e quando ficava muito deprimida lhe procurava para desabafar.
Quando abriu a porta deparou-se com aquela loura de pijama e um olhar triste que dispensava qualquer palavra.
-Entra logo.- Disse Mirna com um tom de voz irritado.
- Sei que estou lhe incomodando de novo. Mas por favor, não vou me demorar muito. Tenta entender. Se não conversar com alguém acho que enlouqueço.
-Tá sei. Mas só você não percebeu ainda que anda louca de pedra.
-Não fala assim comigo. Eu não mereço. – Respondeu Aurora com voz chorosa enquanto  sem a menor cerimônia tomava assento no sofá vermelho da sala visivelmente maltratado pelos gatos.
-Você não sabe o que me aconteceu.- Anunciou Aurora tirando um cigarro do bolso do pijama.
-Fez uma pausa enquanto  o acendia e depois retomou a fala após uma boa tragada:
- Fui pra cama com uma menina de quinze anos na noite passada.
Após vomitar a frase relaxou um pouco e apoiou as costas no sofá olhando para o teto. Mirna não demonstrou nenhuma surpresa e respondeu em um tom muito banal:
-Tá. Legal. Mas de onde saiu essa menina de quinze anos?
-Ela é filha daquele casal de crentes do andar de baixo. Você deve conhecer a Alice. Deve ter cruzado com ela uma vez ou outra no elevador.
- Sim. Acho que sei quem é. Uma lourinha com cara de anjo e magrinha.
-Ela mesma. Aconteceu tudo muito de repente. Ia saindo outro dia para ir ao mercado e descemos juntas. Começamos a conversar a falar da vida e o assunto não morria. Em vez de ir ao super mercado fomos tomar um café e depois... bem. Ela voltou comigo, fomos pra minha casa, continuamos conversando e sem querer... teve uma hora em que ela me tocou. Ficou um clima estranho e a gente começou a se beijar.
- Mas afinal sobre o que vocês conversaram para de uma hora para outra se tornarem tão... intimas?
-Olha, eu não sei direito. Ela começou a desabafar comigo. Disse o quanto era horrível morar com os pais dela, o quanto eles eram fanáticos e a obrigavam a rezar quase o tempo todo, viver para igreja, e do quanto não aguentava mais. Eu me senti no lugar dela. Quis consola-la.  Mas ai aconteceu alguma coisa a mais.
O fato é que foi lindo. Não me arrependo. Ela é uma menina linda por dentro. Só que os pais não percebem. Ela escreve poesias. Quer ser escritora quando crescer.
- Não quero saber dos detalhes. Me diga o que vai acontecer agora? Pelo que você tá dizendo a coisa entre vocês  tende a ficar mais séria do que um encontro casual.
Aurora fez uma pausa antes de responder. Mirna sentou-se ao seu lado e a fitou ansiosa. Mas Aurora logo retomou a prosa:
-Bem. Os pais dela vão sair hoje a noite para visitar alguém. Combinamos de nos encontrar de novo lá em casa.
-Você precisa tomar cuidado com essa porra. Isso vai acabar dando merda. Se os pais dela descobrem fudeu.
-Eu estou disposta a arriscar e Alice também.- Respondeu Aurora determinada. Depois continuou com uma expressão sonhadora no rosto olhando bem nos olhos de sua interlocutora:
-Minha amiga. Sei que você não tem como fazer ideia do que aconteceu ontem. Mas posso lhe garantir que foi muito especial e nunca imaginei que poderia acontecer uma coisa assim. A gente se sentiu muito bem uma com a outra.
Sabe. Ela era como uma filha. A filha que fui um dia e, ao mesmo tempo, a mulher que eu queria estar me tornando quando tinha a idade dela. Eu a abriguei dentro de mim. Eu a fiz parte de mim e esse sentimento ganhou uma forma física e concreta. Éramos mãe e filha em uma espécie de êxtase. Foi algo realmente maravilhoso. Coisa que a palavra é incapaz de dizer.
Mirna deu um riso e depois respondeu. Tentava ignorar Caos e Melancolia roçando em suas pernas enquanto ela conversava.
-Olha. Acho que nem 
Freud ia entender o que rolou entre vocês. Mas se foi legal, ótimo. Eu só acho que você tá entrando demais de cabeça nisso. Não esqueça que  essa menina tem apenas quinze anos e pode não estar levando a coisa tão a sério.
-Não vai por ai. Posso lhe garantir que ela curtiu tanto quanto eu. Tá rolando uma sintonia entre a gente. Você só sabe o que é viver um encontro depois que o vive, que se desencontra de si através dele. Sabe... de repente o mundo ficou em cores! Antes disso tudo era preto e branco. Não preciso lhe dizer isso. Você me conhece,
-Alice, a vida é mais complicada do que isso.
-A vida só começou a viver ontem pra mim...
-Os pais dela é que vão acabar te matando.
-Eles não vão saber. Podemos fugir pra longe deles.
-Você está ouvindo o que esta dizendo? Perdeu a noção?!
-Você é a última pessoa que pode me condenar...
-Não estou condenando!
-Então porque não está feliz por mim?
- Estou preocupada e isso é bem natural diante do que você está me contando. Estou falando sem estar emocionalmente envolvida, tentando prever onde isso pode dar.
-Acho que é por isso que a maioria das pessoas é infeliz. Elas nunca se arriscam. Sempre escolhem o caminho mais fácil e convencional. A felicidade é a anomalia, a subversão.  A sociedade não foi feita para a felicidade. Nós temos que arrancar isso dela.
-Tá bom. Mas calma. E a menina? O que vai ser dela? De Você?  Você pensa em fugir. Mas ela precisa estudar, ter uma profissão. Não basta você sustenta-la. Além disso ela é menor de idade....
-A gente vai dar um jeito em tudo. Eu sinto.... Hoje a noite quando eu atender a porta, ela vai entrar, me olhar com seus olhos famintos de anjo e vamos nos abraçar, nos explorar... Ela vai me falar as coisas que eu diria se pudesse ser ela na minha idade e eu serei a mãe que ela sempre quis ter. Vou lhe abrigar com meu sexo, com meu desejo e pertencer a ela tal como ela vai me pertencer. Você consegue imaginar toda a paz que isso traz?
Depois de tudo, saudades e mais saudades teremos de nós mesmas até que tudo aconteça de novo. E sempre, e sempre... em uma urgência desesperada de sempre....
Mirna ficou muda diante das palavras da amiga. Não sabia o que responder. Só sabia que a coisa era séria e aquele romantismo todo estava fadado a mergulhar cedo ou tarde no abismo. Nada do que ela pudesse dizer faria ser  diferente.
Era uma situação engraçada. Justo ela que não acreditava em amor e sabia das misérias da intimidade humana, que optou pela solidão e o sossego, se via agora confrontada com a paixão desvairada e repentina de sua vizinha por uma adolescente.
A prosa entre as duas não foi muito além daquele ponto. No dia seguinte Mirna desceu pela manhã e sentou-se na praça em frente ao prédio em que morava. Ficou esperando a tal Alice aparecer. A conhecia mesmo do elevador. Uma branquela magrela de cabelos dourados e lisos que não chamava atenção de ninguém.
Não demorou muito e ela atravessou a rua. Mirla se levantou e foi de encontro a ela.
-Oi! Sou sua vizinha. Não sei se lembra de mim.
-Oi. – Respondeu a menina um pouco surpresa com a abordagem.
-Olha. A Alice me contou o que anda acontecendo entre vocês e eu estou disposta a ajudar.
 Alice olhou em volta para ver se alguém as observava. Não confiava nos porteiros e muito menos nos outros habitantes daquele prédio modesto de nove andares. Com muita timidez na voz perguntou:
-Tem algum lugar onde a gente pode conversar melhor sem ninguém por perto?
-Sim. Podemos ir ao meu apartamento.
Mirna subiu primeiro. Pouco depois Alice para manter discrição. Logo ambas estavam dividindo o mesmo  sofá vermelho da noite passada da conversa com Aurora e, como de lei, sob a atenção de Caos e Melancolia que não paravam de implorar atenção.
-Alice principiou a prosa exibindo uma segurança e maturidade que contrastava com a aparência frágil e juvenil.
-Bem. Aurora me disse que  havia se confessado contigo. No início achei que ela havia se precipitado. Mas acho que foi bom. Pelo o que ela me contou você me subestima um pouco por causa da minha idade. Mas olha só, o que aconteceu entre a gente foi mágico pra mim. Espero que você entenda.
-Eu estou tentando entender. Você deve saber que esta situação de vocês é muito delicada, né?
-Acho que aquilo que a gente tá sentindo uma pela outra é mais do que uma “situação”, é uma descoberta. Ela me fez me sentir mulher, mais do que a pessoa que posso ser em casa, na escola, em qualquer outro lugar. Ela me fez me sentir mulher, me fez ser eu...  Não sei explicar.
-Não precisa me explicar nada. Eu só quero saber como vai ser da que pra frente. Não que seja problema meu esse negócio de vocês duas. Só estou preocupada.
Alice exibiu um leve sorriso antes de responder com a voz infantil que tinha e uma tonalidade afetuosa:
- Eu imagino o que você deve pensar sobre a gente: “Essas duas são loucas.” Sei que minha idade é o que atrapalha. Se não fosse isso tudo seria mais fácil pra gente. Mas as coisas acontecem.,,, E não quero voltar atrás disso. Você não sabe o quanto estou disposta...
Sabe, a felicidade é algo maior do que tudo aquilo que te ensinam na escola e na vida. Eu não nasci pra ser mais um rosto na sociedade e não quero acreditar nisso. Juro! Do fundo do meu coração, Aurora em um único dia me fez sentir minha vida inteira.
-Tá legal. Eu entendo. Mas como vocês vão viver desta maluquice?! Tem uma merda de mundo lá fora  cobrando algo diferente de vocês.
-Sei. Então eu quero cobrar algo diferente do mundo. Você acha que eu ser menor de idade segundo aquilo que dizem que é infância é o problema. Mas o problema pra mim é a Aurora ser mais velha.  É ela quem vai sofrer mais com isso tudo! Mas você não entende...
-Eu entendo sim, porra!!! Só quero ajudar vocês a darem um jeito dessa merda toda dar certo.
- Mas você não acredita na gente.... Acha que nosso afeto é só ilusão.
-Eu não tenho que achar porra nenhuma. Só estou preocupada com a situação.
- Hoje pela manhã, depois de nosso reencontro  na noite passada, fiz uns versinhos pra minha velha Aurora. Deixa eu te dizer:
Ontem nos beijamos como mãe e filha,
Como criança e mulher,
Uma no mais profundo da outra.
Fomos duas, fomos várias, milhares
E apenas duas em êxtase!
Fomos , ao mesmo tempo,
Uma e a outra.
Fomos a vida no indefinido de um prazer
Que escapa a própria vida na identidade absoluta
De nosso sexo.
Mirna  sentiu o rosto corar na falta do que dizer. No undo mais profundo de si mesma queria dizer: Sigam em frente com essa merda. Vamos ver no que dá. Aquilo tudo lhe parecia tão maravilhosamente absurdo, tão sem noção, que um lado seu fazia questão de apostar naquelas duas doidas sem limites e bom senso.
Depois de respirar fundo ousou dizer a Alice com um olhar duplo:
-. –Beleza! Vocês tão certas de alguma forma. Eu aceito. Meu medo é das consequências.
Alice serrou os olhos e lhe disse em tom dramático:
_ Não temo nenhuma consequência daquilo que esta nos acontecendo. Estou cagando para os meus pais e pra família toda! Eu quero ser feliz! E minha felicidade me surpreendeu na Aurora!
Gritava isso   diante de Mirna com os olhos marejados.
A conversa acabou ali. Mirna percebeu que a coisa era realmente séria. Deejou boa sorte a adolescente e, depois que ela se foi ficou pensando sobre a situação.
Alguns dias se passaram sem ela ter notícias das duas. Até que em um fim de tarde quando voltava pra casa depois de ministrar umas aulas de musica, se deparou com uma aglomeração em frente ao prédio em que morava.
Assim que a avistou na calçada em meio aos outros moradores e curiosos, o porteiro  careca e barrigudo, que nunca lhe demonstrou muita simpatia, correu em sua direção  informando aos berros:
-Sua vizinha se matou!!!! Sua vizinha se matou!!!!! E foi encontrada na cama com a filha da dona Divina!!!! Puta que pariu! As duas morreram juntas! Tinha um bilhete no lado da cama!
“ As pessoas falam tanto de amor, mas nada sabem dele.
Diante dos que amam se apavoram, renegam a pureza do laço
Em nome da hipocrisia do modo tosco que sabem gostar.
Nos matamos contra o egoísmo dos outros
E contra os medos de sociedade
Que nos condenavam o amor verdadeiro e sublime.”
Era isso que dizia a  cópia xerocopiada que o porteiro lhe deixou na mão.
Mirna não lhe respondeu nada. Ignorou o porteiro e subiu para o seu apartamento transtornada.
Foi recebida por Caos e Melancolia que lhe miavam pedindo atenção ou comida. ..
Ela sentou no sofá vermelho e se pôs a meditar sobre a sua própria vida.
De algum modo que ela não entendia, não poderia ser a mesma depois daquilo.
Duas mulheres se mataram por um amor proibido no mínimo, difícil de suportar frente as imposições de sociedade. Isso a levava a odiar mais o mundo e as pessoas. Mas não era só isso...
Terminou o dia aos prantos no mínimo universo da cama ouvindo Kath Bush e pensando em si mesma e no vazio absoluto que era a vida em sociedade e a imersão em qualquer representação e vontade de mundo.