segunda-feira, 2 de novembro de 2015

À SOMBRA DAS JULIETAS

Mais um dia começava na vida vazia de Mirna do Mirar Triste. Abrira os olhos e ficou mirando o teto retardando o ato mecânico de se levantar. Afinal, o que poderia esperar daquele dia?
Já havia se passado uma semana do suicídio de Aurora e Alice. Haviam sido encontradas abraçadas  sobre a cama, tinham as feições serenas e pareciam apenas compartilhar um bom sonho. Mas a verdade é que haviam ingerido juntas algum tipo de veneno para dar cabo de tudo, fugir das complicações que lhe traria o amor proibido que as  uniu por capricho do acaso.
No prédio não se falava de outra coisa. Todos os moradores estavam indignados com o acontecido e solidários aos pais de Alice que se perguntavam como aquilo podia ter acontecido. Aurora ficou sendo a vilã da história aos olhos de todos. Acusavam-na de ter seduzido a inocente Alice. Ninguém desconfiava que Mirna havia testemunhado em primeira mão aquela história de amor de dois dias podendo acrescentar as fantasiosas versões que se espalhavam um testemunho privilegiado dos acontecimentos. Mas ela não via nenhum sentido em fazê-lo. Não mudaria nada.
O casal de gatos  Caos e Melancolia miavam na beira da cama exigindo sua cota de ração matinal. Diante de seus incessantes apelos Mirna finalmente se levantou. Satisfez a vontade dos bichanos, tomou um banho e depois se arrumou mecanicamente. Eram um pouco mais de onze horas. O sol já estava a pino e seus raios invadiam a sala pela janela que havia dormido aberta.
Alguém bateu na porta para a surpresa de nossa ruiva. Não fazia ideia de quem poderia ser. Apenas Aurora costumava fazê-lo e, agora que estava morta, julgava-se livre de visitas inesperadas.  Quando abriu a porta deparou-se com uma jovem loura muito semelhante a Alice.  Ela apresentou-se como Sophia, sua irmã mais velha.
-Desculpa incomodar. Mas precisava muito falar com você.- Foi se justificando a jovem.
- Tá legal. Entra ai.
Sophia vestia uma camiseta preta estampada com a capa de Heaven and Hell do Black Sabbath. Entrou e tomou acento no sofá vermelho. Mirna sentou-se ao seu lado. Já fazia ideia do assunto, apesar de surpreendida pela novidade de que Alice possuía uma irmã. Lhe pareceu apropriado começar a conversa.
-Imagino que tal como eu você sabe de tudo...
-Sim. Minha irmã me contou o que estava acontecendo. Eu só não sabia o que elas pretendiam fazer...
-Pois é. Eu também não...
-Bom... Eu também sou lésbica e me sinto um pouco culpada pelo que aconteceu. Talvez minha irmã não tivesse feito aquilo se eu não...
Mirna não lhe deixou terminar a frase e antecipou a resposta com um tom de voz sereno e acolhedor:
-Não diga bobagem. O que aconteceu não é culpa sua. De forma alguma... Elas se apaixonaram de uma hora pra outra e não aguentaram o tranco. Infelizmente... Coisa de tesão. Por isso não me deixo levar por essas coisas. A gente sempre se fode com isso.
-Não fale assim. Minha irmã me falou sobre o que estava sentindo. Não foi de uma hora pra  outra. Ela já se sentia atraída pela quarentona já tinha algum tempo. Sempre que se encontravam no elevador ela pensava em arrumar alguma desculpa para se aproximar...
Sabe. As pessoas todas pensam como macho, que sexo é o que leva a paixão ou a gostar de alguém. Mas isso é uma mentira. As pessoas gostam de acreditar nisso. Mas não é verdade.
- Para mim é tudo fisiológico- Retrucou Mirna. Não estava gostando daquela conversa. Mas não tinha como fugir dela. Caos e Melancolia já estavam por ali tentando ganhar alguma atenção miando e roçando nos pés das duas.
- Acho que no fundo você sabe que não é assim. Duvido que realmente pense como um marcho partriacal e capitalista que reduz o amor a um comercio de tesão e atenção mutua.
-Mas, afinal, do que você esta falando?
-Sou formada em sociologia....
-E eu não leio livros. Só tenho tempo pra TV. Só pra te lembrar: Nós somos duas estranhas. Acabamos de nos conhecer e eu ainda não sei porque você me procurou. Espero que não tenha sido para falar sobre sexo.
-Desculpa! Eu só precisava conversar com alguém sobre o que aconteceu... Minha irmã tinha falado de você. Então, me pareceu uma boa ideia bater na sua porta. Vai ver que eu estava errada.
-Não estou te mandando embora, certo? Só acho que esse assunto é totalmente sem cabimento.
-sei que esse é o tipo de coisa sobre a qual as pessoas não costumam falar. Elas preferem ignorar e tornar o assunto invisível, assim como todo fato e realidade humana que diz respeito a ele. Não acho isso legal. O que aconteceu a minha irmã e a sua amiga prova isso.
-Está bem. Continue. Vamos ver até onde você vai chegar. Só acho que tudo isso é coisa da sua cabeça.
--Tudo bem se você prefere jogar as regras do jogo e pensar como todo mundo estar condicionado a pensar. Mas isso não dá certo para muita gente. As pessoas acham, por exemplo, que minha família é pacata, tradicionalmente bem resolvida e feliz. Mas isso é uma mentira. Meu pai é um neurótico religioso que quer controlar a vida de todo mundo, minha mãe uma bipolar e a Alice não foi o primeiro caso de suicídio. Meu irmão mais velho se matou depois que entrou para a faculdade e começou a ter brigas feias com meu pai. Ele cismou de fazer filosofia. Mas meu pai achava que filosofia não passa de um sinônimo para teologia e transformou a vida dele num inferno. Chegou a um ponto em que ele não aguentou...
- Eu sinto muito. Queria poder ajudar.
-Você já ajuda me escutando um pouco. Mas, sem ironia, podia me ajudar mais se fosse do tipo que lesse livros.
Mirna sorriu com a resposta de Sophia. A conversa foi ficando mais descontraída a partir dali.  Melancolia pulou no colo da dona em uma estratégia radical para conseguir um pouco de atenção. Caos não deixou barato e fez o mesmo pulando no colo da visitante. A prosa  prolongou-se por algumas horas.
Nas semanas que se seguiram as visitas de Alice se tornaram frequentes. Falavam absolutamente sobre tudo e se divertiam muito uma com a outra. Mirna não era de ter muitos amigos e se orgulhava disso. Mas estava gostando da companhia de Sophia.
Não demorou muito para começarem a fazer outras coisas juntas, como ir a exposições e alguns shows de rock. Sophia escolhia as atividades e apresentava seu mundo particular a Mirna que se sentia cada vez mais envolvida pelos interesses e questões da nova amiga.
Uma noite as duas chegaram tarde e Sophia preferiu dormir no apartamento de Mirna sabendo que  teria problemas em casa  por voltar tão tarde. As duas dividiram umas taças de vinho e, de repente, assim bem de repente, se enlaçaram em um beijo de tirar o fôlego. Depois foram pra cama e deram asas a noite uma através da outra.
No dia seguinte acordaram com aquela ressaca moral, mas  nem um pouco surpresas com o que havia acontecido. Era impossível não lembrar de Alice e Aurora. Agora eram julietas também. Mas não perderiam o rumo da situação como aquelas duas imaturas.
Sophia falou pelo interfone com a mãe e comunicou sua decisão de sair de casa. Provisoriamente moraria com Mirna. A mãe ficou evidentemente chocada e preocupada em como expor o fato ao marido.  Para evitar conflitos e baixarias as duas decidiram viajar as pressas.
Foram para a casa de uma antiga colega de faculdade de Sophia passar algum tempo. Caos e Melancolia não gostaram da ideia de viajar e deixar a zona de conforto de seu pequeno território. Mas logo se adaptaram a casa de veraneio e seus jardins.
Mirnia e Sophia estavam agora em outra cidade, conhecendo pessoas e saindo de seus lugares comuns enquanto se descobriam como um casal.
Mas não era um final feliz. A vida , afinal, não é feita de finais  felizes.
As coisas aconteciam de maneira tão insólita e espontânea que era difícil dizer que rumos iriam tomar suas vidas daqui para frente. Por enquanto tudo parecia um sonho. Mas é claro que a realidade, quando se confunde com o sonho, é porque já não temos o mínimo controle da situação e muito menos fazemos ideia do que realmente esta acontecendo.
Em um fim de tarde a beira mar as duas abordaram o assunto:
-E agora? Qual o próximo passo?- Indagou Mirna a companheira com o olhar mergulhado no mar.
-Vamos viver um dia de cada vez. Não planejar muito, esperar pouco...
- As vezes acho que você esta me ensinando as piores coisas do mundo.
-Que bom. Pois eu acho que você esta gostando. Mas a liberdade pesa e as vezes até nos oprime quando ser livre não é uma regra ou uma convenção.
-Eu sempre achei que éramos escravos de nossas vidas. Talvez Aurora e Alice pensassem assim também.
-Mas agora você sabe que só somos escravos de nossa liberdade. Ela é um vício. Falando nisso acho que é hora de voltar aquele assunto do dia em que nos conhecemos: Você ainda acha que tudo é fisiológico?
Mirna demorou um pouco para responder. Não sabia direito o que dizer.
- Eu acho que tudo é possível. Principalmente o improvável. Nós duas somos o improvável. Aquilo que não costuma acontecer e, entretanto, depois que acontece parece banal.
-Enquanto isso, na casa da amiga de Sophia, Caos e Melancolia faziam as unhas em um sofá que não era vermelho. Ainda não haviam se habituado ao novo ambiente. Mas a curiosidade era mais forte do que o medo. Destemidamente exploravam o novo espaço.
Alice era sempre lembrada através de um de seus poemas de adolescência:

METAMORFOSES DE UMA BORBOLETA

Vivo tempos de mudanças internas
E reinvenções externas.
Já sou quase uma borboleta.
Mas não me basta o jardim.
Quero explorar o céu,
Ir além de mim mesma.
Talvez, quem sabe,
Até tocar o sol.
Nada me basta,

Nada me define.

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