Mais um dia começava na vida
vazia de Mirna do Mirar Triste. Abrira os olhos e ficou mirando o teto
retardando o ato mecânico de se levantar. Afinal, o que poderia esperar daquele
dia?
Já havia se passado uma semana do
suicídio de Aurora e Alice. Haviam sido encontradas abraçadas sobre a cama, tinham as feições serenas e
pareciam apenas compartilhar um bom sonho. Mas a verdade é que haviam ingerido
juntas algum tipo de veneno para dar cabo de tudo, fugir das complicações que
lhe traria o amor proibido que as uniu
por capricho do acaso.
No prédio não se falava de outra
coisa. Todos os moradores estavam indignados com o acontecido e solidários aos
pais de Alice que se perguntavam como aquilo podia ter acontecido. Aurora ficou
sendo a vilã da história aos olhos de todos. Acusavam-na de ter seduzido a
inocente Alice. Ninguém desconfiava que Mirna havia testemunhado em primeira
mão aquela história de amor de dois dias podendo acrescentar as fantasiosas
versões que se espalhavam um testemunho privilegiado dos acontecimentos. Mas
ela não via nenhum sentido em fazê-lo. Não mudaria nada.
O casal de gatos Caos e Melancolia miavam na beira da cama
exigindo sua cota de ração matinal. Diante de seus incessantes apelos Mirna
finalmente se levantou. Satisfez a vontade dos bichanos, tomou um banho e
depois se arrumou mecanicamente. Eram um pouco mais de onze horas. O sol já
estava a pino e seus raios invadiam a sala pela janela que havia dormido
aberta.
Alguém bateu na porta para a
surpresa de nossa ruiva. Não fazia ideia de quem poderia ser. Apenas Aurora
costumava fazê-lo e, agora que estava morta, julgava-se livre de visitas
inesperadas. Quando abriu a porta
deparou-se com uma jovem loura muito semelhante a Alice. Ela apresentou-se como Sophia, sua irmã mais
velha.
-Desculpa incomodar. Mas
precisava muito falar com você.- Foi se justificando a jovem.
- Tá legal. Entra ai.
Sophia vestia uma camiseta preta
estampada com a capa de Heaven and Hell do Black Sabbath. Entrou e tomou acento
no sofá vermelho. Mirna sentou-se ao seu lado. Já fazia ideia do assunto,
apesar de surpreendida pela novidade de que Alice possuía uma irmã. Lhe pareceu
apropriado começar a conversa.
-Imagino que tal como eu você
sabe de tudo...
-Sim. Minha irmã me contou o que
estava acontecendo. Eu só não sabia o que elas pretendiam fazer...
-Pois é. Eu também não...
-Bom... Eu também sou lésbica e
me sinto um pouco culpada pelo que aconteceu. Talvez minha irmã não tivesse
feito aquilo se eu não...
Mirna não lhe deixou terminar a
frase e antecipou a resposta com um tom de voz sereno e acolhedor:
-Não diga bobagem. O que
aconteceu não é culpa sua. De forma alguma... Elas se apaixonaram de uma hora
pra outra e não aguentaram o tranco. Infelizmente... Coisa de tesão. Por isso
não me deixo levar por essas coisas. A gente sempre se fode com isso.
-Não fale assim. Minha irmã me
falou sobre o que estava sentindo. Não foi de uma hora pra outra. Ela já se sentia atraída pela
quarentona já tinha algum tempo. Sempre que se encontravam no elevador ela
pensava em arrumar alguma desculpa para se aproximar...
Sabe. As pessoas todas pensam
como macho, que sexo é o que leva a paixão ou a gostar de alguém. Mas isso é
uma mentira. As pessoas gostam de acreditar nisso. Mas não é verdade.
- Para mim é tudo fisiológico-
Retrucou Mirna. Não estava gostando daquela conversa. Mas não tinha como fugir
dela. Caos e Melancolia já estavam por ali tentando ganhar alguma atenção
miando e roçando nos pés das duas.
- Acho que no fundo você sabe que
não é assim. Duvido que realmente pense como um marcho partriacal e capitalista
que reduz o amor a um comercio de tesão e atenção mutua.
-Mas, afinal, do que você esta
falando?
-Sou formada em sociologia....
-E eu não leio livros. Só tenho
tempo pra TV. Só pra te lembrar: Nós somos duas estranhas. Acabamos de nos
conhecer e eu ainda não sei porque você me procurou. Espero que não tenha sido
para falar sobre sexo.
-Desculpa! Eu só precisava
conversar com alguém sobre o que aconteceu... Minha irmã tinha falado de você.
Então, me pareceu uma boa ideia bater na sua porta. Vai ver que eu estava
errada.
-Não estou te mandando embora,
certo? Só acho que esse assunto é totalmente sem cabimento.
-sei que esse é o tipo de coisa sobre
a qual as pessoas não costumam falar. Elas preferem ignorar e tornar o assunto
invisível, assim como todo fato e realidade humana que diz respeito a ele. Não
acho isso legal. O que aconteceu a minha irmã e a sua amiga prova isso.
-Está bem. Continue. Vamos ver
até onde você vai chegar. Só acho que tudo isso é coisa da sua cabeça.
--Tudo bem se você prefere jogar
as regras do jogo e pensar como todo mundo estar condicionado a pensar. Mas
isso não dá certo para muita gente. As pessoas acham, por exemplo, que minha família
é pacata, tradicionalmente bem resolvida e feliz. Mas isso é uma mentira. Meu
pai é um neurótico religioso que quer controlar a vida de todo mundo, minha mãe
uma bipolar e a Alice não foi o primeiro caso de suicídio. Meu irmão mais velho
se matou depois que entrou para a faculdade e começou a ter brigas feias com
meu pai. Ele cismou de fazer filosofia. Mas meu pai achava que filosofia não
passa de um sinônimo para teologia e transformou a vida dele num inferno.
Chegou a um ponto em que ele não aguentou...
- Eu sinto muito. Queria poder
ajudar.
-Você já ajuda me escutando um
pouco. Mas, sem ironia, podia me ajudar mais se fosse do tipo que lesse livros.
Mirna sorriu com a resposta de
Sophia. A conversa foi ficando mais descontraída a partir dali. Melancolia pulou no colo da dona em uma
estratégia radical para conseguir um pouco de atenção. Caos não deixou barato e
fez o mesmo pulando no colo da visitante. A prosa prolongou-se por algumas horas.
Nas semanas que se seguiram as
visitas de Alice se tornaram frequentes. Falavam absolutamente sobre tudo e se
divertiam muito uma com a outra. Mirna não era de ter muitos amigos e se
orgulhava disso. Mas estava gostando da companhia de Sophia.
Não demorou muito para começarem
a fazer outras coisas juntas, como ir a exposições e alguns shows de rock.
Sophia escolhia as atividades e apresentava seu mundo particular a Mirna que se
sentia cada vez mais envolvida pelos interesses e questões da nova amiga.
Uma noite as duas chegaram tarde
e Sophia preferiu dormir no apartamento de Mirna sabendo que teria problemas em casa por voltar tão tarde. As duas dividiram umas
taças de vinho e, de repente, assim bem de repente, se enlaçaram em um beijo de
tirar o fôlego. Depois foram pra cama e deram asas a noite uma através da
outra.
No dia seguinte acordaram com
aquela ressaca moral, mas nem um pouco
surpresas com o que havia acontecido. Era impossível não lembrar de Alice e
Aurora. Agora eram julietas também. Mas não perderiam o rumo da situação como
aquelas duas imaturas.
Sophia falou pelo interfone com a
mãe e comunicou sua decisão de sair de casa. Provisoriamente moraria com Mirna.
A mãe ficou evidentemente chocada e preocupada em como expor o fato ao
marido. Para evitar conflitos e
baixarias as duas decidiram viajar as pressas.
Foram para a casa de uma antiga
colega de faculdade de Sophia passar algum tempo. Caos e Melancolia não
gostaram da ideia de viajar e deixar a zona de conforto de seu pequeno
território. Mas logo se adaptaram a casa de veraneio e seus jardins.
Mirnia e Sophia estavam agora em
outra cidade, conhecendo pessoas e saindo de seus lugares comuns enquanto se
descobriam como um casal.
Mas não era um final feliz. A
vida , afinal, não é feita de finais
felizes.
As coisas aconteciam de maneira
tão insólita e espontânea que era difícil dizer que rumos iriam tomar suas
vidas daqui para frente. Por enquanto tudo parecia um sonho. Mas é claro que a
realidade, quando se confunde com o sonho, é porque já não temos o mínimo controle
da situação e muito menos fazemos ideia do que realmente esta acontecendo.
Em um fim de tarde a beira mar as
duas abordaram o assunto:
-E agora? Qual o próximo passo?-
Indagou Mirna a companheira com o olhar mergulhado no mar.
-Vamos viver um dia de cada vez.
Não planejar muito, esperar pouco...
- As vezes acho que você esta me
ensinando as piores coisas do mundo.
-Que bom. Pois eu acho que você
esta gostando. Mas a liberdade pesa e as vezes até nos oprime quando ser livre
não é uma regra ou uma convenção.
-Eu sempre achei que éramos escravos
de nossas vidas. Talvez Aurora e Alice pensassem assim também.
-Mas agora você sabe que só somos
escravos de nossa liberdade. Ela é um vício. Falando nisso acho que é hora de
voltar aquele assunto do dia em que nos conhecemos: Você ainda acha que tudo é
fisiológico?
Mirna demorou um pouco para
responder. Não sabia direito o que dizer.
- Eu acho que tudo é possível.
Principalmente o improvável. Nós duas somos o improvável. Aquilo que não
costuma acontecer e, entretanto, depois que acontece parece banal.
-Enquanto isso, na casa da amiga
de Sophia, Caos e Melancolia faziam as unhas em um sofá que não era vermelho.
Ainda não haviam se habituado ao novo ambiente. Mas a curiosidade era mais
forte do que o medo. Destemidamente exploravam o novo espaço.
Alice era sempre lembrada através
de um de seus poemas de adolescência:
METAMORFOSES DE UMA BORBOLETA
Vivo tempos de mudanças internas
E reinvenções externas.
Já sou quase uma borboleta.
Mas não me basta o jardim.
Quero explorar o céu,
Ir além de mim mesma.
Talvez, quem sabe,
Até tocar o sol.
Nada me basta,
Nada me define.
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