DISTOPIAS NO QUINTAL

Distopias passeiam pelo quintal.

Justo lá, onde enterramos os mortos, 

onde pisamos em futuros,

e nossa pele apodrece ao sol.

Amanhã  será um inferno.

Mas o fim dos nossos dias

não virará notícia

para as crianças semi mortas

da nova era da terra ignota.

ORDEM DO DIA

 

Torne-se o que não és.

Pois o ser é um eco,

uma miragem,

presente em todas

as coisas

como simulacro.

A aparência é essência

e constante mudança .

NOITE ENCANTADA

A noite é clara

quando o corpo sonha

inventando mundos

através do mundo

dilatando a realidade.

A imaginação acorda

quando a razão dorme

e velhos deuses passeiam

dentro de nós.

RENÚNCIA

Desistir hoje,

desistir sempre,

e tão profundamente,

que o mundo nunca seja o suficiente.

Fracassar  intensamente,

até ser livre de si, 

dos outros e da sociedade,

desvelando com radicalidade,

o inumano delírio de existir,

a vontade de tudo explodir,

de criar contra a obrigação insana de produzir e se fazer humano!

REVOLUÇÃO DOS BICHOS

Há de chegar o dia

no qual a humanidade, finalmente, regressará ao uivo.

Serão, então,  destruidos todos os consensos e entendimentos,

distituídos todos os poderes,

queimadas todas as razões e certezas,

até que ninguém mais se entenda,

que o mundo desabe sobre nós,

em um misto de caos e inocência,

conduzido por cães e gatos.

 

COSMOLOGIA DO CAOS

Mal cabemos nos dias,

mas nos iludimos

com as falsas certezas do pensamento,

ignoramos as descontinuidades das coisas,

os labirintos do instante,

a imensidão e vertigem,

da natureza em movimento,

dentro e fora de nós. 

Mas no transitório de nossa existência banal,

o mundo é sempre novidade,

aventuroso tédio de um acontecimento incerto

produzido por seus desdobramentos.

Os efeitos criam suas causas,

como os fatos produzem os atos,

em sincronias e paradoxos.

Nada sabemos da existência

em seus devires e metamorfoses

que embriagam a razão

nas transmutações do atemporal.

Como é relativo o Ser das coisas!

Nada tem essência. 

Tudo é borboleta!

Não importa a sua opinião. 

PALAVRAS SILÊNCIO

Tenho a  intuição de invisíveis palavras sem voz.

Sei que há algo indizível no dito

que escapa,

pois não descreve o mundo,

nem segue o pensar.

Não cabe no concebível

da ordem de todos os discursos.

Mas cria o não lugar

de  ditos

indigentes e vadios, 

que inventam afetos,

imagens,

e modos outros de existência.

Contra todas as gramáticas

que governam o mundo,

tais palavras silêncio 

escrevem mudas outras realidades.

Elas não representam coisas,

nem raciocínios ocos.

Elas não dizem nada.

Apenas passeiam

e sonham

reinventando a voz

enquanto um texto dorme na boca

escapando a toda identidade.

GATO ENIGMA

O gato não está contido na palavra gato.

O gato é algo mais que 

a  imagem viva em linguagem

que nos diz o gato como conceito.

Há um gato dentro do gato

que nos escapa como experiência

e nos torna o gato.

O gato não sabe a palavra gato,

mas sabe o som do seu nome.

O gato é um corpo fechado um seu próprio mundo

e desconhece o acontecimento de um  enunciado.

ENVELHECER

A velhice mata o ego

e refaz passados

envelhecendo futuros.

Tudo que importa

é saber o mundo

além da ilusão do humano

e, talvez,

tornar-se uma árvore.

UMA HORA O MUNDO VAI PARAR

Uma hora o mundo vai parar.

Não se sabe quando,

mas tudo irá transbordar,

congestionar,

A terra há de gritar,

nos despir da humanidade,

reinventar o animal, 

até que a natureza seja novamente possível. 

Uma hora o mundo vai parar.

CONTRA JUVENTUDE

 

Hoje são os jovens que governam um mundo envelhecido.

Em tempos de hiper tecnologia e capitalismo de catastrofe, eles andam mais caducos do que os nossos pais.

Não sabem que a época  se desfaz,

que o vento é mais forte do que a verdade,

que já é tarde demais,

que ainda seguimos em 1968,

contra atemporais miragens  distópicas.

Os jovens agora só pensam em dinheiro e sucesso.

INSANOS E LOUCOS

Há uma enorme distância entre a loucura e a insanidade. A loucura é evasão, desconstrução, incerteza do eu e do mundo. A insanidade é a embriaguez da verdade. Um delirio, uma afirmação radical do logos e do poder. Se esta última é uma indigestão racional, a primeira é uma contra razão. Os insanos são filhos da realidade como verdade, os loucos arautos da perplexidade. Enquanto os insanos buscam a ordem, os loucos tem sede de liberdade.

SEJA UM DESAJUSTADO

Vivemos ao sabor da sobrevivência possível, 

da miséria cotidiana da vida comum,

das obrigações vazias,

e valores duvidosos,

que nos sustentam em sociedade.

Diante de cenário tão deplorável,

só nos salva uma boa dose de caos, loucura, e liberdade.

VIDA, CULTURA, E ABSURDO

O absurdo é o traço mais saliente da cultura humana. Sua marca mais séria. Até quando misturado ao humor ou a  ironia do paradoxo, ela permanece profundamente séria.

Mesmo assim, pode despertar um riso descreto e nervoso em quem não se leva demasiadamente a sério, e percebe o caos como a raíz de toda expressão cultural.

Todo ato ou produção de cultura,  guarda um mal estar, uma inquietude, ou desespero quase inconsciente , diante do assombro que a vida provoca. A cultura é um artifício contra a banalidade e insignificância da existência. Ela nos transcende e ilude, tornando suportável a vida.

SONHO E METAFÍSICA

O sonho é mais importante do que a vida. Pois a consciência não passa de um delírio que adivinha o mundo como virtualidade e potência. 

Acredie: Tudo só é real quando não existe.

Tudo é fluxo, tensão entre forças.

Tudo muda,

Tudo é incerto além do bem e do mal.

A vida é imaginação, a mais convincente das ilusões.  Mas você ainda pensa e acha que é real. Mas o real não existe.

A verdade é apenas uma ilusão moral.

SEJA O RIO

Há muita filosofia no correr incessante das águas de um rio.

A natureza , em seus infinitos arranjos,

é pura metafísica sem transcendência,

onde nada é sagrado ou definitivamente legível .

É natural  sentir o rio fluindo,

pulsando nas veias como uma vontade ou necessidade...

Saber o correr e poder das águas   como o sangue no corpo, como um devir que se intensifica na iminência do imenso de um mar urgente e imprevisivel. 

Há mais realidade no rio do que no perecível arranjo de um corpo humano, de um dizer  afogado nas folhas de um tratado de filosofia, nos conceitos que não deságuam em intensidades de outras formas de vida, que não levam a um caos não verbal de gestos em convulsão.

Não leia.

Pule no rio. 

Seja na corrente

que leva embora.