1-
A VOZ DO MUNDO
Eu morava em um pequeno quarto
dentro de um prédio abandonado no centro da cidade. Tudo que existia nele era
uma janela. Meus pertences se resumiam a um colchão velho, um travesseiro e algumas cobertas. Estar em casa era
sinônimo de estar deitado. Apenas isso.
O prédio era habitado por
miseráveis catadores de lixo e vagabundos de toda espécie. Mas até eles me
evitavam. Diziam que eu cheirava a cadáver. O que devo admitir como verdade.
Tomar banho era para mim um hábito bastante raro.
Aquela era a única vida que eu
sabia viver. E não importava com absolutamente nada. Quanto ao meu cotidiano, me alimentava de
qualquer coisa comestível que me caísse nas mãos. Sempre aparecia alguém
oferecendo alguma coisa na rua. Bastava ficar em pontos estratégicos próximos a
lanchonetes e restaurantes. Sempre se conseguia algum resto de comida nestes
lugares. Não por que as pessoas eram
boas. Apenas porque sobrava.
Quando não estava vagando pelas
ruas, atividade a qual dedicava a maior parte do meu tempo, refugiava-me entre
as quatro paredes do quarto maltrapilho e vazio que habitava. Em seu aconchego
alternava irregularmente entre a cama e
a janela. Ou seja, quando não estava tentando dormir deixava a imaginação vagar pelo movimento da
rua lá embaixo.
Mas não sou do tipo
pensativo. nunca tive grandes questões
existenciais. Se quer recordo onde
nasci, como cresci ou guardo lembrança de qualquer membro da minha possível
família. Na verdade não carrego o peso de nenhum passado. Me lembro apenas de
ontem... depois esqueço e sigo minha vida como se o tempo fosse apenas o agora
e sempre.
Também não sou de conversas.
Gosto de caminhar sozinho. Mas quanto a este particular é bom esclarecer uma
coisa: Tenho um bom ouvido. Quero
dizer... Enquanto eu ando por ai costumo colecionar fragmentos de conversas que
escuto em todas as partes.
Isso é difícil de explicar. Os
pedaços de diferentes conversas formam um painel, dialogam entre si dentro da
minha mente. É como se juntos produzissem um novo texto formado pela soma dos
fragmentos. Chamo isso de voz do mundo. Os fragmentos vão se entrelaçando e
construindo uma trama. Cada dia as frases de um quase infinito de vozes se
combinam em minha cabeça e contam uma história diferente que diz muito sobre o
que realmente esta acontecendo a minha volta. Por baixo da superfície dos fatos
cotidianos as palavras seguem uma vida própria e se realizam através de nós.
Somos todos seus instrumentos. Em cada silaba nos afirmamos como meros joguetes
do verbo.
Acredite em mim. Sei mais sobre o
que realmente esta acontecendo no mundo do que a maioria das pessoas. A
existência é um grande pesadelo. Mas ninguém faz ideia do tamanho do caos no
qual estamos metidos. Não me considero um privilegiado por ter essa habilidade.
Para mim é como uma maldição.
Através da voz do mundo eu sei o
quanto as pessoas são artificiais, o quanto existem apenas naquilo que dizem.
Mas as palavras possuem um poder secreto. Elas tem vontade própria e determinam
tudo o que sentimos, pensamos ou fazemos. Qualquer coisa dita é pré- definida
por este espirito que habita todo enunciado. Toda conversa ou frase que
concebemos é de antemão arquitetada por esta coisa sem nome que governa as
palavras. Sua manifestação é o que chamo de voz do mundo. Pois o mundo é a
própria palavra em sua impessoalidade e imperativo de sentido.
2-
O
MUNDO DA VOZ: A ESTRUTURA DE UM DIA
Há muita
inquietude nas ruas atualmente. Percebo uma agressividade latente nas palavras.
Mesmo naquelas conversas mais cotidianas,
as frases soam como navalhas na maior parte das vezes. As pessoas estão
sempre descordando. É como se a harmonia
entre as palavras, no seu simples acontecer como discurso, houvesse sido
suplantado pela afirmação pura e simples do seu significado. As palavras unidas
em discursos se enfrentam. Mas este é um assunto para outro dia.
Andar pelas
ruas escutando a voz do mundo é como montar um complexo quebra cabeça. Nem tudo
que escuto é relevante. Muita coisa eu simplesmente descarto. É preciso encontrar
falas que se comuniquem uma com outras... falas sem qualquer nexo causal,
apesar disso. Só assim é possível identificar
a trama do dia.
A terama do
dia de hoje era “divida”. Havia colhido muitas falas sobre dividas pela manhã.
Agora mesmo
passei por dois ambulantes onde o mais robusto, aos berros e sacudindo
freneticamente os braços diante do seu interlocutor, fazia a seguinte queixa:
-Você precisa
me pagar.
Não anda
sobrando dinheiro para ninguém.
A pessoa tem
que ter palavra!
O outro e
franzino ambulante não se intimidava e retrucava no mesmo tom:
- Eu vou te
pagar quando disse que ia te pagar.
Se fosse pra
ficar me cobrando antes do tempo não me emprestasse.
Onde já se
viu. Você não tem a mínima consideração e destorce as coisas.
Poucos
metros em frente, escutei duas senhoras
conversando em um banco de praça:
-A Matilde vai
me pagar pelo que fez ontem. Onde já se viu chamar minha atenção de modo tão
deselegante na frente dos outros?! Ela devia ter mais consideração comigo
depois de tudo que fiz por ela. Mas não. Preferiu me avacalhar. Falta de
gratidão é uma coisa que não tem perdão. E ela ainda distorceu a situação toda.
Outros
fragmentos com a mesma temática surgiram em diferentes pontos do meu trajeto na
fala de diversas pessoas. Isso era suficiente para eu saber que algo de muito
sério relacionado a divida estava acontecendo em algum lugar. A minha missão
era impedir o pior. Sim... Era para isso que eu juntava os fragmentos. Para
seguir a uma trilha que me levaria a me envolver em algum tipo d situação na
qual eu salvaria alguém. No fundo eu sou uma espécie de super- herói com um
poder muito sutil: impedir que as palavras e enunciados destruíssem as pessoas.
Mas agora,
como era hora do almoço, resolvi fazer uma pausa na minha aventura. Sentei na
calçada em frente a um restaurante e fiquei ali com os olhos vidrados no nada.
Não demorou muito e um funcionário do restaurante apareceu e me ofereceu uma
quentinha com a condição de que eu fosse embora dali. O meu mau cheiro estava
incomodando a clientela. Isso sempre funcionava. Eu jamais morreria de fome
enquanto não fizesse do banho um cuidado diário.
Só quero
deixar bem claro que não sou do tipo que pede esmolas. Sei que as pessoas nunca
agem por piedade ou solidariedade. Há sempre qualquer outra coisa por traz de
gestos altruístas. Muitas vezes é a pueril necessidade de se sentir superior e
moralmente distinto através dos necessitados. A verdade é que ninguém leva um
mendigo para casa e o convida a comer na sua cozinha.
Havia uma
praça próximo dali. Era um espaço arborizado e agradável. Gostava de almoçar
por ai e depois dormir sobre a grama. Havia um cachorro branco, um vira latas,
que sempre aparecia do nada e se deitava ao meu lado.
Antes de dormi
apreendi mais um fragmento de conversa:
- Não se trata
de vingança. Mas de um acerto de contas. No fundo você colhe o que plantou.
Funciona assim pra todo mundo.
Não dei muita
atenção e me rendi ao sono. Só fui acordar uma hora depois. Agora estava bem
disposto e descansado. Apto a retomar minhas andanças em busca de aventura. Em
muito pouco tempo alcancei uma parte da cidade que não tinha o costume de
frequentar. Era um bairro de classe media alta. Por lá as ruas eram limpas e as
fachadas dos prédios esnobes e pseudo sofisticadas. Gente como eu não era bem
vinda por aquelas bandas. Mas eu sabia que tinha alguma razão para estar ali.
Mas não
precisei perambular muito para me ver diante de uma situação interessante...
3-O MUNDO DA VOZ: A CARNE DAS PALAVRAS
Desta vez eu
havia ficado preso a um monologo. Uma senhora muito bem vestida, de porte
claramente aristocrático e aparentando pelo menos uns setenta anos, passou na
direção contrária falando sozinha:
- Estão todos
mortos agora.
E Não me cobre
nada por isso Sr. Tempo. Nada lhe devo.
Não tinha eu
que morrer com eles! A vida quebrada deles não equivale a minha morte.
Onde já se
viu?! Minha vida não tem prazo de validade.
Pois é.... Ela
estava falando com o tempo. Deve ser senil. Mas havia alguma coisa ali além de
uma velha esclerosada. Mas ela também estava falando de dívida. Dei meia volta
e comecei a segui-la discretamente prestando toda atenção no seu discurso:
-... Ninguém
realmente existe. A morte é a verdadeira realidade. Você devia entender isso
Sr. Tempo. Todos morreram e não faz diferença eu continuar viva ou ficar morta.
É tudo a mesma coisa. Mas você quer que eu morra. Mas eu não irei morrer.
Entendeu?
Eu não podia
ficar indiferente aquilo. Aprecei um pouco o passo e me pus a caminhar ao lado
dela. Então criei coragem para interpela-la:
- Então o
tempo quer acabar com você?
A idosa
arregalou os olhos verdes, passou a mão pela vasta cabeleira branca e me
respondeu meio ressabiada:
- Você fede
demais. Parece um morto vivo. Mas vou logo avisando que não tenho nenhum
dinheiro comigo. Não posso ajuda-lo.
-Mas eu não
quero dinheiro- Respondi de forma um pouco áspera.
Continuamos a
caminhar lado a lado e ela não parava de repetir que eu fedia a um cadáver. A
conversa não estava rendendo muito. Eu devia ter ficado quieto. Nunca da certo
perder meu tempo com as pessoas. Elas nunca me enxergam. Estava eu agora
fazendo o jogo das palavras. Deixando que enunciados acontecessem através de
mim replicando a trama. Mas agora era tarde demais. Eu já estava envolvido. E ela não parava de reclamar do meu cheiro.
Gastei muita
saliva para persuadir aquela senhora maluca a conversar comigo. Mas tive que
ceder um pouco para chegar a um tipo de acordo. Concordei em dar um jeito de
improvisar um banho. Paramos em um posto
de gasolina e ela pediu uma mangueira do lava jato emprestada. Foi humilhante
aquilo. A velha me alvejou com um jato d’agua e me obrigou a me esfregar até que
a lama entranhada na minha pele fosse embora com a agua. Aquilo durou alguns
longos minutos que me pareceram uma eternidade.
-Bom. Agora
sim podemos conversar. Você não esta lá estas coisas, mas pelo menos não parou
de feder a carniça.
Sabe filho,
você devia tomar cuidado com o Sr. Tempo. Ele nos espreita o tempo todo e, se
fosse por ele, já estaríamos todos mortos. Acho que nem teríamos nascido. Trate
de se cuidar mais. É o modo que temos para engana-lo durante algum tempo.
- eu não
entendo o que a senhora diz sobre o tempo.
- Imagino que
não. Mas todos estamos devendo uma coisa a ele. Viver é tirar algo dele...
O tempo me
disse que você apareceria; que tentaria me salvar dele.
-Olha, eu
apenas sigo palavras. Elas me levam a pessoas com problemas e eu as salvo. Eu
escuto a voz do mundo. Mas a senhora não tem como entender isso. Então, apenas
me fale sobre o tempo. Quero ouvir.
- esta bem.
Vamos sentar naquele banco ali. Preciso descansar um pouco as pernas.
Nos sentamos lado a lado em um
banco de ponto de ônibus. Por um instante ficamos em silêncio nos estudando e
talvez planejando o próximo movimento. Era uma situação bem estranha. Mas acho
que aquilo tinha que acontecer. Agora eu estava dentro das palavras e as
palavras dentro de mim. Como todo mundo... Não sabia direito o que fazer. Já
não tinha qualquer domínio da situação.
Um menino de
cinco anos passou a nossa frente discutindo com a mãe:
-Um dia eu vou
ser grande e você vai ver. Vou pagar tudo que você me deu. Acabar com a divida
que tenho com você....
A mãe ignorava suas palavras. Preferia não
levar o garoto a serio... Voltei a prestar atenção naquela senhora doida que,
aliais, já tinha começado a falar novamente:
-...Por isso
que eu digo. Você precisa se precaver, se defender do tempo. Caso contrário
ele te leva embora também. Eu vi todos morrerem...
Ela ficava
repetindo que todos estavam mortos. Divida e morte pareciam relacionadas para
ela. Tentei explorar um pouco isso. Mas que maçada! Eu agora era parte do jogo.
Havia caído nas garras da voz do mundo. Eu não tinha mais controle. As palavras estavam no
controle e eu já não era capaz de perceber onde elas estavam nos levando.
4-
O
MUNDO DA VOZ: O DIZER O PENSAR E O NÃO SER
Eu estava todo
molhado por conta daquele maldito banho de mangueira. E agora estava
conversando com aquela senhora em um ponto de ônibus como se fossemos íntimos.
Só sei que precisava entender o que as palavras estavam fazendo com aquela
senhora, que mundo estavam inventando na cabeça dela. Talvez eu pudesse
salva-la. É isso que eu sempre faço. Mas ela apenas falava sobre o tempo:
-O tempo nos
quer meu filho. Ele é o maior inimigo da vida. Ele nunca se conformou com o
fato dela ter acontecido. Por isso quer destruí-la. E tenta fazer isso através
de cada um de nós. É por isso que morremos. Mas a vida sempre começa de novo.
Isso o deixa possesso.
Por outro
lado, a gente sabe que a vida também não pode derrotar o tempo. Essa guerra não
tem fim. Ninguém vai vencer.
-Olha minha
senhora; não sei mesmo o que pensar sobre o tempo. Na verdade eu nem tenho uma
boa memória. Não me lembro do meu passado... Só acho que é contra as palavras
que realmente lutamos. Elas nos usam para realizar coisas. Isso esta
acontecendo exatamente agora com a gente. Não há como escapar. Tudo que eu faço
é salvar algumas pessoas das palavras. E é isso que queria poder fazer pela
senhora.
-Mas não há
salvação meu filho. Já estamos todos mortos no tempo. Na verdade nunca
existimos.
-A senhora não
pode realmente acreditar nisso.
-Eu vi todos
morrerem. Não faz diferença no que a gente acredita.
Naquele momento
ocorreu diante de nós uma aparição bizarra. Uma mulher nua e esbelta de longos
cabelos dourados surgiu flutuando no ar e sorriu ternamente para nós; dizendo:
-Não se
assustem nem tentem entender o que agora acontece e nunca foi.
Sou a palavra
do tempo, a musa dos poetas e loucos. Aconteço a meio caminho do que foi e não
foi. É preciso que vocês saibam.
A existência acontece
em muitas camadas de universo.
Estamos aqui,
agora e em muitos outros lugares que vocês não sabem possíveis além dos
sentidos.
Estou aqui
para conduzi-los por uma viagem através do não ser, pois estamos todos imersos
nele quando toda ação se mostra ausente.
Antes que pudéssemos
esboçar qualquer reação, o mundo desapareceu a nossa volta. Já não percebíamos se
quer os nossos corpos. Eu não sabia o que era eu e o que era o mundo. Estávamos
em algum lugar indeterminado onde já não havia tempo ou palavra. Não me
pergunte como, mas estávamos dentro daquela mulher nua. Mas a senhora que me
acompanhava estava se dissolvendo como se fosse feita de pó. Ela sorria
enquanto isso acontecia.
Quanto a mim,
eu não fazia a mínima ideia de onde estava ou o que havia me tornado. Meu corpo
parecia outra coisa... Não me façam explicar. As palavras haviam sumido de
dentro da minha cabeça. Apenas imagens desfilavam em minha mente em um fluxo
interminável. Não conseguia acompanhar aquilo direito. Não sabia mais o que era
a realidade.
Não sei quanto
tempo isso tudo durou. Confesso que não me lembro de tudo que experimentei. Só
sei que em algum momento tudo voltou ao normal e eu estava ali diante de um
garoto determinado a se matar. Eu precisava impedi-lo. Liberta-lo do jogo das
palavras. Mas do que nunca eu sabia que precisava salvar as pessoas... Desta
vez, entretanto, não fui bem sucedido. Mas não podia desistir. Eu preciso
salvar as pessoas.