1-
A VOZ DO MUNDO E OS SILENCIOS DO PENSAMENTO
Cá estava eu novamente fechado em minha rotina. Escutava novamente a
voz do mundo nas ruas e tentava evitar o pior. Alguém precisava combater as
palavras e, por alguma razão, esta missão era minha.
Não tenho memória... Por isso não me surpreende esta estranha sensação
de que algo importante aconteceu nos últimos dias, embora eu não seja capaz de
lembrar qualquer detalhe do ocorrido.
Era conveniente não ter memória, pois assim eu era muito pragmático e
restrito com as palavras e elas não podiam me dominar como fazem com a maioria das pessoas.
Agora a pouco, em minhas andanças matinais pela cidade, impedi um cara
de bater na mulher durante uma briga de casal. Eu havia seguido alguns
fragmentos de conversas que levaram até ele. Todos falando de brigas e agressões. Era assim que eu salvava pessoas.
Isso pode parecer fácil. Mas na maior parte das vezes não é. Eu não
posso persuadir as pessoas verbalmente. Não enfrento as palavras diretamente.
Evito coercivamente seus atos tal como posso e sem esperar ser compreendido.
Qualquer explicação é desnecessária.
No caso especifico deste casal, tudo foi bastante complicado. Me
precipitei sobre o cara antes que ele acertasse um soco na mulher que gritava como uma louca. Mas, ao contrario de
demonstrar gratidão, ela simplesmente avançou para cima de mim tentando
defender o companheiro. Tive que enfrentar os dois. Mesmo assim valeu a pena.
Depois da minha súbita e inesperada intervenção, a conversa entre eles mudou. Passaram a falar
de outras coisas, esqueceram as ameaças de agressão e ofensas
verbais. Eu virei o assunto... Sei que algo muito ruim teria acontecido caso eu não tivesse intervido.
Agora uma nova sequencia de fragmentos de conversa me levava para outro
bairro da cidade. Logo identifiquei o objeto da minha intervenção. Era um cara
mudo... a temática desta vez não me parecia muito clara pois dizia respeito ao
silêncio. Eu fiquei pelo menos meia hora seguindo o rapaz pelas ruas. Até que
de repente ele parou e caminhou na minha direção. Ficou me encarando sem dizer
nada. Mesmo assim eu sabia os pensamentos dele dentro da minha cabeça.
“-Você... Eu sei o que você faz. Você tira a atenção das pessoas. As
impede de pensar e viver. Você quer corrigi-las segundo o que pensa que deve
ser. Mas quem é você para saber isso?”
No momento seguinte era como se ele tivesse invadido minha cabeça e eu
a dele e ambos tivéssemos sido arremessados para algum outro lugar. Era uma
espécie de limbo. Um lugar frio e escuro onde nada existia, nem mesmo um chão.
Foi uma boa briga. Eu não conseguia entender nada. Levei algum tempo
para perceber que aquele rapaz cego não era uma pessoa. Ele era um encadeamento
de palavras. Ele ela uma frase... tinha verbo, sujeito e predicado. Eu estava
sendo diretamente atacado pelas palavras.
E as palavras são cegas. Elas não enxergam... A única forma de
enfrenta-las é com o corpo, através de gestos. Também é preciso focar o pensamento em imagens ...
Você não sabe do que estou falando. Mas uma grande batalha aconteceu
naquele limbo.
Quando tudo acabou eu me vi sozinho no meio do nada. O rapaz
desapareceu repentinamente. Mas ninguém havia vencido...
2-
A VOZ
DO MUNDO E AS PALAVRAS
Eu lidava com a voz do mundo através dos pedaços de conversas que
colhia nas ruas. Mas as palavras também dominavam através dos livros. No
terreno da escrita, entretanto, eu não era capaz de enfrenta-las. Ali as palavras eram mais sutis e poderosas
na arte de exercer seu poder através da sombra dos pensamentos. Minha arena era as ruas e as situações mais
cotidianas.
De modo geral as pessoas não sabem o quanto as palavras comprometem
suas certezas, o modo como são manipulados por elas. Mas existe um jogo, uma
trama das palavras que vai muito além de seus significados. Nós não as usamos.
Somos manipulados por elas e sua necessidade narcisista de auto afirmação.
Uma menina cheia de vida e com todo futuro pela frente esbarrou em mim
hoje. Mas as palavras que ela vivia lhe
tiravam toda perspectiva das coisas. Eu a ouvia falar, mas não via uma pessoa
por traz das palavras. E assim é na maioria das vezes.
As palavras não dizem as coisas, não correspondem a elas. Mas se
alimentam das coisas como se alimentam
de nós mesmos no seu acontecer como enunciados.
A vida é a organização das palavras em discursos. Esta é sua
existência. Mas elas não existem em si mesmas. Elas precisam de nós. Enquanto
as pessoas não perceberem isso, estamos sujeitos aos seus caprichos. As palavras dormem na sombra...
Voltei para casa, para o meu quarto logo no início da noite. As vozes
do mundo se calam entre aquelas quatro paredes quando me deito e, simplesmente,
não penso em nada. A solidão é a melhor maneira de fugir ao domínio das
palavras.
Gosto do sono...
De me perder do mundo
E das palavras através dos sonhos.
Através deles minha existência
Ganha plena realidade
E eu já não me importo
Se quer com o relativo fato
Da minha existência.
Existo como metapalavra
E corpo físico e abstrato.
Quando já quase adormecia aquela mulher nua apareceu do nada flutuando diante
de mim. “ Eu sou a palavra do tempo” Era tudo o que ela dizia. Então, uma
senhora surgiu deitada ao meu lado. Mirou-me nos olhos e disse: “- Cuidado com
o Sr. Tempo meu filho. Ele quer acabar com todos nós.”
Ambas me pareciam familiar... Devo tê-las conhecido em algum momento.
Mas isso não é importante. Tão subitamente como apareceram ambas simplesmente
sumiram no ar. Não há muito a ser dito
sobre isso. Coisas assim acontecem o tempo todo.
Existo dentro do meu silêncio. Talvez algum dia as pessoas finalmente
entendam que não dependemos das palavras, que não precisamos delas para
compartilhar o essencial. A vida dos discursos não devia valer mais do que a
vida das pessoas. Mas não é o que acontece.
Estou com sono...
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