quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

ANTONIN ARTAUD : MITO E NOVA RELIGIOSIDADE


Para Antonin Artaud o teatro é mais do que uma arte,  é uma metafísica onde se refaz a vida através do seu duplo,  uma cosmogonia invertida na materialidade do símbolo vivido como rito e gnose,  em que o delírio emerge como forma de conhecimento e o próprio corpo explode e se refaz como vitalidade alucinada e alucinante.
Sei o quanto tal afirmação carece de rigor e precisão. Mas não há como expressar a força do mito que se tornou Antonin Artaud  sem recorrer a uma codificação irracional do discurso que se torne em si mesma mera manifestação/ arreemedo do próprio mito que busca dizer.
Martin Esslin, em seu breve ensaio introdutório as idéias de Artaud para “coleção Mestres da Modernidade” procurou resgatar sua singuralidade como fundador de um mito, de uma nova religiosidade, como é claro na seguinte passagem:
“... os cultos através dos quais a energia psíquica de Artaud se mantém intensa e ativa talvez sejam, em si mesmos, tolos, superficiais ou intelectualmente frágeis. Isto não significa que um deles não possa, enquanto se consolida uma tradição a seu redor, transforma-se gradualmente numa poderosa corrente, torna-se base de uma religião qualquer. A Historia conhece exemplos desta espécie de fenômeno.
Em nível mais mundano e secular, porem, Artaud, ao contrário de outras personalidades em torno das quais se tem desenvolvido cultos, é único na plenitude da documentação que proporcionou de sua vida e pelas implicações gerais, fascinantes, de seu caso. Na integralidade de sua auto revelação, ele junta-se ao grupo seleto de grandes mestres do gênero que não pode ser classificado como simples arte, mas é apresentação completa da própria experiência da vida humana: Pepys, Casanova, o Marques de Sade, a Marquesa de Sévigné, Boswell, Horace Walpole...
A Artaud falta à serenidade e a calma interior da maioria desses- o Marques de Sade é a exceção obvia- mas, por outro lado, ele apresenta a anamnese psicológica- ou mesmo psicopatologica- mais extravagante de todas. Viu-se a si mesmo como mais um na longa linha de poetes maudits  : Hoelderlin, Baudelaire, Nerval, Lautremont, Nietzsche. E certamente tinha razão. Contudo, nenhum destes deixou uma documentação tão completa e esclarecedora sobre si mesmo como a que Artaud legou a posteridade.
Artaud, porém, transcende a categoria dos poetes maudits, assim como a dos grandes auto-reveladores. Pelo que lhe diz respeito, ele fornece uma imensa riqueza de vislumbres minunciosos e penetrantes de um tipo humano da maior importância na História, um fascinante anacronismo em nossos tempos, porem tão mais valioso, pelo material que nos fornece sobre esta espécie de personagem de influencia crucial: o personagem, entende-se, do “Bobo Santo”, Artaud teve a má sorte de haver nascido numa época que entrega indivíduos dessa categoria a manicômios. Em outras épocas, ele talvez  tivesse sido um xamã, um profeta, um alquimista, um oráculo, um santo, um professor gnóstico ou, quem sabe, o fundador de uma nova religião. A intensidade de sua emoção, a profundidade   de seu comedimento, o rico fluxo de sua faculdade de gerar mitos, a eloqüência de sua linguagem, seu ímpeto todo poderoso de criar ritual ( pois esta era, essencialmente, a natureza de seu fanatismo pelo teatro), a aterradora violência de sua invectiva, a grandiosa loucura de sua exaltação, tudo isso estava presente em personalidades que, em outras épocas, foram  reverenciadas, adoradas e martirizadas como receptáculos de poderes divinamente inspirados ou diabolicamente possuídos que transcendiam os limites da simples humanidade.”
( Martin Esslin. Artaud. Artaud/ tradução de James Amado; SP: Editora da Universidade de SP; 1978; p. 109)
A obra de Artaud  pode ser considerada um grande enigma do século XX, porque, de muitas maneiras, parece não pertencer a ele, remetendo ao impessoal de uma reinvenção mítica, arcaica e atemporal  da vida que não parecia crível em  tempos de tão avançada secularização das representações de mundo.

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